Nem mulata, nem moreninha: pesquisadora fala sobre se reconhecer negra
A bacharel em Geografia e Coach de Mulheres Camila Lima cresceu no interior do Estado e Pernambuco. Filha de pais funcionários públicos, ela diz que cresceu em uma “bolha interracial” (ou seja, formada por pessoas de diferentes etnias ). Mesmo assim, lidava com situações relacionadas com o racismo — que, na época, ela não sabia reconhecer como tal.
Filha de funcionários públicos, Camila estudou em uma escola particular religiosa, um espaço onde não encontrou referências raciais e nem como essa está relacionada a uma sociedade profundamente desigual.
No livro ‘Tornar-se negro: As vicissitudes da Identitade do Negro Brasileiro em Ascensão Social’, a autora e psicanalista Neusa Santos Souza afirma que “descobrir-se uma pessoa negra” é entender que suas vivências e histórias foram mascaradas por pessoas brancas e compreender as violências raciais aos quais são submetidas por sua condição racial.
“Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de tornar-se gente”, escreve Neusa.
Sem esse modelo de identificação, Camila explica que existem dificuldades para as pessoas negras de conseguirem localizar sua história e ancestralidade. Tanto é que grande parte das mulheres negras só conseguem começar a se entender como negras depois de uma transição capilar .
“O caminho que trilhei foi o caminho do desconforto, como alterar meu cabelo para parecer mais elegante; ser desejada e sexualizada mas não ser cogitada como namorada; ser alvo de piadas que eu sequer entendia bem; ser estereotipada, rotulada, corrigida”, explica Camila.
Todas essas questões passaram a impactar na identidade da pessoa negra, que passou a desconhecer o significado do que é ser uma pessoa negra. Por esse motivo, passa-se por um processo de reconhecimento tardio do que a cor de pele significa em um âmbito social e histórico.
Descobrindo-se uma mulher negra
Camila conta que só conseguiu dar nome ao racismo que sofreu em sua vida aos 27 anos, quando saiu do Nordeste e foi morar em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Segundo ela, foi onde ela começou a conseguir entender o racismo e a revidá-lo. O seu esforço para “diminuir” sua negritude começou a se tornar mais recorrente, seja em espaços de trabalho ou de lazer.
“Buscar entender a estrutura patriarcal, que sabidamente tem o racismo e o machismo como o cimento, me trouxe respostas, me trouxe esse entendimento sobre mim e sobre o motivo de tanto desconforto. É uma estrutura muito cruel para as mulheres negras “, afirma.
Depois de se entender como uma mulher negra , ela afirma ter se recordado sobre abusos e violências pelas quais passou em sua infância e adolescência. Também foi quando compreendeu que buscava “suavizar sua negritude” para se encaixar no mundo. “Essa, muitas vezes, é uma das técnicas de sobrevivência para continuar existindo.”
A questão de consciência racial, aliás, foi o que fez Camila querer sair da casa de sua mãe. “Falei pra ela toda eufórica que eu era uma mulher negra e ela me disse pra não dizer isso, que eu era apenas moreninha, exótica, muito bonita”, conta.
“Veja bem, é a minha mãe, sem absolutamente nenhuma consciência racial dentro da família, tentando me ‘proteger’ do fato de eu ser quem sou. Mesmo inconscientemente, ela sabia as dificuldades de ser uma pessoa negra e não desejava aquilo pra mim’, acrescenta.
Camila considera que ter o conhecimento necessário para entender suas angústias, fazendo com que seja mais fácil dar nome a elas, foi algo que a deu segurança. Ela acredita que é importante aprender sobre a estrutura em que se vive desde cedo para que as pessoas pretas possam identificar as opressões que sofrem — e aprender a o que se pode fazer para derrotá-las. Hoje, esses são ensinamentos que ela busca passar para suas três filhas.