Equidade combate mercado fechado a negros, diz procuradora
O mercado de trabalho brasileiro oferece obstáculos e ceifa oportunidades aos negros, mesmo em caso de profissionais que saem de universidades com elevado grau de especialização. A avaliação é de Valdirene Silva de Assis, procuradora do Ministério Público do Trabalho de São Paulo e coordenadora do Projeto Nacional de Inclusão de Jovens Negras e Negros no Mercado de Trabalho.
Em entrevista ao R7, ela afirma que as ações afirmativas que ganharam força na área educacional nas últimas décadas contribuíram para o aumento dos negros no mercado universitário, levando-os a obter cursos de pós-graduação, mestrado ou doutorado, mas que a realidade que encontram ao tentar uma vaga no mercado ainda é de exclusão.
A afirmação vai ao encontro dos dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) na última semana e que reafirmam a condição de inferioridade do negro em relação ao branco em praticamente todos os aspectos do mercado de trabalho.
Assis afirma que parte das empresas começa a acordar para o problema e pensar em programas de equidade étnico-racial. Seja sob o ponto de vista da resposabilidade social ou pela noção de que uma empresa que eventualmente seja considerada racista tem muito a perder no Brasil, onde a maioria dos consumidores é formada por pretos e pardos. Dessa forma, avançam no sentido de avaliar seu quadro de funcionários para eliminar exclusões, distorsões, e garantir condições de acesso e progressões na carreira a trabalhadores negros.
A procuradora diz considerar fundamental que se discuta a questão racial e a importância de conferir a todos os brasileiros um patamar civilizatório mínimo. Em especial no Mês da Consciência Negra, comemorado em novembro – o Dia da Consciência Negra é celebrado nesta sexta-feira (20). Veja trechos da entrevista concedida pela procuradora, que também é responsável pelo Coordigualdade no MPT de São Paulo, núcleo que combate a discriminação no mercado de trabalho.
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R7 – Como vê atualmente o mercado de trabalho para os negros?
Valdirene Assis – Os jovens se beneficiaram de ações afirmativas na área da educação nos últimos anos. Não são apenas cotas, mas um conjunto de ações que inclui também programas de financiamento, bolsas de estudo etc. E esse conjunto de ações trouxe um número antes não visto de jovens negros e negras para o mercado universitário. Muitos passaram a sair com mestrado, doutorado, pós-graduação, e alimentaram a expectativa de que qualificação garantiria a entrada no mercado de trabalho.
Mas esses jovens narram grande dificuldade de acessar o mercado, especialmente por suas formações que lhes dão condições de ingressar em postos estratégicos. Quando as portas se abrem, se abrem para posições de base.
O mercado de trabalho no nosso país padece de lógicas excludentes, tanto em processos seletivos como de progressão de carreira. Os estereótipos negativos contra pessoas negras se impõem e ceifam oportunidades de trabalho especialmente aos jovens, que estão ingressando. Quanto mais especializado, menos espaço se encontra no mercado.
R7 – Poderia falar um pouco das barreiras encontradas pelo negros ao tentar acessar o mercado de trabalho?
Valdirene Assis – As pessoas quando vão para os processos seletivos, sabem que não será nada fácil participar daquela disputa. Detalhes como o nome, endereço, universidade, bastam para que a pessoa seja eliminada sem apresentar sua efetiva qualificação profissional.
É muito recorrente que alguns empregadores trabalhem com a noção de confiar em indicações, certas teias de contatos, que fazem o universo daquela empresa já majoritariamente branco. Quando ela continua buscando novos empregos através dessa rede já previamente estabelecida, vai encontrar pessoas semelhantes. Existem muitas formas de o mercado de trabalho ceifar oportunidades de pessoas negras.
Quando conseguem chegar ao final de processos seletivos, terminam em contato com o superior hierárquico imediato que dará a última palavra. Naquele momento é frequente na narrativa de profissionais negros e negras de que alguns gestores têm uma natural inclinação para entender que a pessoa branca tem melhor “perfil” para o cargo. Antes se falava em aparência, agora é “perfil”.
Esse “perfil” vem com uma análise muito subjetiva e que não passa pelo currículo necessariamente. Na leitura que aquele gestor está fazendo, a pessoa branca tem mais perfil. Se feita desse jeito, de uma forma abstrata, está reproduzindo racismo estrutural. Falar ‘essa pessoa não tem cara de médico’, por exemplo, está no inconsciente coletivo. Essa ideia do perfil está relacionada a estereótipo, passa por um crivo discriminatório.
R7 – Recentemente algumas empresas anunciaram processos seletivos exclusivos para negros, inclusive um banco após uma diretora afirmar em um programa de entrevistas que contratar negros para posições-chave seria ‘nivelar por baixo’. Como as empresas podem mudar essa realidade? Conte um pouco sobre o seu trabalho com empresas no MPT?
Valdirene Silva – Essa declaração foi alvo de uma retratação pública. Essa empresa resolveu realizar investimento no programa de equidade étnico-racial. Muitas vezes negros deixam de se inscrever porque sabem que esse pensamento falado em rede nacional paira no imaginário de muitas corporações. Dizer que selecionar pessoas negras ou amarelas, por exemplo, é “nivelar por baixo” passa por um crivo discriminatório.
Em relação ao trabalho no MPT, nós fizemos um estudo sobre a situação dos jovens e entedemos ser importante um projeto para fomentar o seu ingresso. Essas pessoas podem e devem participar de espaços estratégicos, de gestão de empresas.
Nós temos uma atuação institucional, um projeto com metas. Foram selecionados como público alvo jovens negros e negras, além de escritórios de advocacia, agências de publicidade, com o objetivo de elevar a participação dos jovens nesses locais escolhidos e acompanhar sua evolução. Faço a coordenação nacional. Fazemos reuniões com as pessoas jurídicas que selecionamos para participar do projeto. A partir do momento que o MPT seleciona, será acompanhada com vistas a uma política interna de equidade étnico-racial. Esse é um movimento em que o MPT coloca a agenda. Não é um projeto coercitivo. Algumas empresas pediram para participar e foram aceitas.
Entre os muitos trabalhos que são feitos há um movimento de um pacto pela inclusão. Entregamos para as pessoas jurídicas para que saibam passos que podem seguir, etapas a desenvolver, para terem uma política interna de equidade étcnico-racial eficaz.
No setor de publicidade, de forma muito expressiva, houve uma adesão a esse pacto. No setor de recursos humanos também, envolvendo as maiores companhias do país, como Cia de Talentos, 99 jobs, CIEE, Empodera, Empregue Afro, BDR, Nube
Essas que tão fazando seleção. As empresas estão respondendo por importantes processos seletivos com esse olhar para a desigualdade social.
Por conta de esse movimento estar ocorrendo que nós tivemos processos específicos para pessoas negras ou cotas.
É muito importante que as empresas tenham políticas internas para que as pessoas negras que ali trabalham saibam que são valorizadas. Os que estão fora saibam que podem se candidatar sem ser vítima de racismo e que não vão ficar paradas em termos de carreiras. É um momento positivo para o mercado de trabalho. Há esse compromisso com a diversidade racial.
R7 – A pandemia está aumentando o desemprego. Dá pra falar que isso atinge o negro de forma mais impactante devido à essa maior vulnerabilidade no mercado?
Valdirene Assis – Quando nós fechamos 2019, a pauta racial estava num crescendo no mercado de trabalho, quando a gente tem o advento da pandemia, alguns dos que estavam sendo acompanhados pelo projeto fizeram a leitura de que a pauta racial poderia regredir em função do desemprego, de desigualdades econômicas que o país enfrentaria.
A minha primeira resposta a essas pessoas foi que a pauta social iria crescer sobremaneira, pois ficaria mais evidente quais são as vítimas da exclusão social.
Todas as crises vivenciadas no país terão impactos desproporcionais de gênero e raça.
Essas pautas se impuseram, a questão social sobremaneira. Sobre o prisma da questão de saúde, as pessoas negras são as que mais morreram. Do ponto de vista econômico, são os que mais perderam renda. Do ponto de vista do trabalho, as mais impactadas com o desemprego. Os rostos que nós vimos trabalhando em sua maioria nesse período foram de pessoas negras. Pessoas que estavam no transporte coletivo, mais expostas, com menos possibilidade de isolamento. Vítima preferencial no direito à saúde.
Esses elementos foram desnudados nesse momento, não só aqui, mas em outros países. A violência, que também vitima mais negros, também se exacerbou. Mesmo durante a pandemia, quando as pessoas estavam guardando o isolamento, esse grau de violência contra pessoas negras continava alarmante. Dois episódios foram chocantes: a morte de um jovem que estava em sua casa e que foi baleado, e o da mãe, que deveria ter tido seu direito ao isolamento garantido, mas precisou levar a criança ao trabalho. E para dar conta de uma tarefa deixou a criança no apartamento e quando volta não encontra seu filho. A matéria ainda está sendo apreciada. Ela no mínimo foi vítima de uma negligência.
R7 – O movimento Black Lives Matter, protestos contra morte de negros nos EUA, e outros movimentos e personalidades atuais que se manifestam têm contribuído para alguma melhora desse quadro?
Valdirene Assis – O que acontece nos EUA apenas dá um eco, de que o que se vivencia aqui também é vivenciado por pessoas negras com processo históricos semelhantes no mundo. Acho que a sociedade acabou entendendo a importância desse rediscutir da condição de exclusão social da população negra.
O país vive um momento importante de análise do seu processo histórico, da necessidade de conferir a todos os brasileiros um patamar civilizatório mínimo. É importante estarmos nesse Mês da Consciência Negra fazendo uma discussão da questão racial.