A morte misteriosa da moça bonita e rica na Via Anchieta
Você conseguiria afirmar que uma bela mulher, sentada ao volante de um carro batido em grade de proteção, numa rodovia de grande movimento, teria praticado suicídio?
Seria difícil acreditar. No caso de que estamos falando, o carro ficou destroçado. Motoristas que passavam naquele momento pararam, providenciaram socorro, mas a mulher já chegou morta à Santa Casa de Misericórdia.
No Instituto Médico Legal, em rotineira necrópsia, os legistas fizeram uma incrível constatação: havia uma bala alojada na cabeça da mulher. Sim, um projétil de arma de fogo. O aparente grave acidente de automóvel poderia ser tentativa de encobrir um assassinato.
Assim que o laudo necroscópico ficou pronto, todas as atenções da Polícia e da imprensa voltaram-se para o caso, cercado de mistérios, e muito atrativo, quando se soube a identidade da mulher que estava dentro do carro. Um laudo, ressalte-se, informa o que houve, mas não indica autoria. Conta como foi, e não quem foi.
Maria Tereza Ayres Dianda de Lara Campos, 23 anos, jovem e bonita, rica, era de família da alta sociedade e havia saído de casa a pretexto de praticar natação no elegante clube Paulistano. Qual poderia ser o significado de tudo aquilo? Aos poucos, as opiniões foram se dividindo. Homicídio, a tese mais sedutora. Suicídio, preferiam os que se diziam mais realistas.
A Polícia também se dividiu em lados opostos. Matou-se? Mataram-na? O delegado-chefe da Polícia Civil no litoral, Ary Bauer, encampou a hipótese de suicídio. O delegado diretor do então Instituto de Polícia Técnica (hoje Polícia Científica), Ely Mourão, endossou a possibilidade, que considerava evidente, de assassinato. Na troca de chumbo entre os dois chefões da Polícia, o delegado encarregado do caso em sua origem, Paulo Novais Paula Santos, da humilde e sem recursos delegacia de Cubatão (o aparente acidente aconteceu na via Anchieta), ficou como marisco entre impacto de ondas fortes e rochedo. Na pressão para rápida solução do caso, as investigações foram transferidas de Cubatão para a Delegacia de Homicídios, na Capital. Assumiu a condução do inquérito um dos mais eficientes delegados do órgão especializado em investigar casos de autoria desconhecida, José Vidal Pilar Fernandes, da equipe B. O Ministério Público designou de imediato um promotor, José Salomão Ayker, da 3ª Vara Criminal de Santos, para acompanhar os trabalhos da Polícia.
Entrando na cobertura do caso, adotei o meu estilo: numa investigação dessa natureza, não há lado ou tese para defender, muito menos a priori. Melhor preferir que os fatos, sem sofismas, falem por si. É mais prudente, sensato e eficaz.
Fui ao palco dos fatos, o quilômetro 43 da Via Anchieta. O local em que o carro bateu é um pequeno viaduto, logo após um declive em curva, razoavelmente acentuado. Se não tivesse acontecido o choque contra a grade de proteção, o carro se precipitaria numa ribanceira. Na delegacia de Cubatão, ainda responsável pelo caso, vi as fotos do local e do corpo de Maria Tereza. Examinado pelos médicos legistas, foi descoberta uma perfuração no lado frontal direito da cabeça, com transfixante saída à esquerda. O tiro foi disparado à curta distância. A arma não foi encontrada no local do aparente acidente. Na bolsa da mulher, encontrou-se um projétil calibre 7,65 mm. O pai de Maria Tereza possuía uma pistola Beretta, semiautomática, desse calibre, que havia desaparecido de casa. Concluiu-se que teria sido ela a arma utilizada para o disparo fatal.
Maria Tereza havia se separado do marido há dois meses. Tinha dois filhos. Era preciso conhecer um mínimo da sua personalidade para ajustar qualquer teoria, principalmente a de suicídio. Soube que ela fazia terapia com um psiquiatra e o procurei, sabendo dos impedimentos éticos entre ele e a paciente. Convenci-o de que ele poderia contribuir indiretamente para a elucidação do caso e prometi que suas eventuais revelações não seriam expostas tendo ele como fonte. Nessa relação de confiança, soube que ela apresentava um quadro depressivo, precisando tomar remédios, apresentando quadro clínico de angústia.
A rigor, não havia – tecnicamente -como provar o que teria acontecido na via Anchieta. O delegado Vidal Fernandes, sabendo por meu intermédio das informações psiquiátricas sobre Maria Tereza (que não seriam levadas aos autos de inquérito), examinou tudo o que tinha em mãos e optou por produzir uma prova, que entendeu ser indiscutível, sobre exatamente o que poderia ter acontecido na estrada.
Para a rodovia, foi levada um carro Aero Willys, igual ao que Maria Tereza dirigia. Na última curva antes da mureta, simulou-se uma ausência de controle da direção, que seria provocada pelo tiro na cabeça. O carro, desgovernado, seguiu exatamente em direção ao ponto em que bateu. Estaria comprovada, assim, a intenção de suicídio, seguida de precipitação do carro no penhasco. Para Vidal Fernandes, uma explicação irrefutável.
Não pensou assim o promotor. A moça, antes de sair de casa, apanhou um maiô. Seu plano, procurava argumentar, poderia ser banhar-se no mar, talvez encontrar-se antes com alguém, e beleza com riqueza não se harmonizavam com a teoria de suicídio, porque ela não teria motivação alguma para se matar. Mas não fez nenhuma sugestão e nem requisitou, como poderia, algum tipo de investigação específica, o que lhe deixou completamente sem condições de acusar alguém. Num processo, não existe “eu acho”. Existe “eu provo”.
Vidal, que ao longo da carreira seria delegado-geral de Polícia, manteve com firmeza a sua análise e desse modo encerrou o inquérito, com um relatório conclusivo sobre suicídio. A reconstituição da cena de Maria Tereza ao volante do carro foi documentada com muitas fotos e minucioso relatório pericial.
Essa conclusão não agradou ao lado conflitante. O promotor não concordou, mas não tinha o que fazer: se ele achava que foi homicídio, teria que apontar um assassino, mas sua única fonte de informação era o inquérito policial, por um órgão especializado nessa matéria, onde se afirmava que Maria Tereza havia decidido partir dessa vida por vontade própria. Sua saída foi à francesa: considerou o caso insolúvel, a depender da descoberta de fatos novos, podendo ser reaberto a qualquer momento. Vidal, aborrecido, me fez uma confidência: “há casos, como este, que você faz uma investigação impecável e, no fim, ninguém quer acreditar”. De fato, esse momento de alguma coisa nova nunca chegou. A frase de Vidal, gravada na minha memória, soou profética para vários casos no futuro. A morte de Maria Tereza, no final dos anos sessenta, seria um crime prescrito depois de tanto tempo. Se há algum segredo nessa história, jamais será descoberto