Da economia à família: a realidade da mulher negra no Brasil
“Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo, as negras duelam para vencer o machismo, o preconceito e o racismo”. A música de Yazalú diz muito sobre o dia 8 de Março para grande parcela das mulheres brasileiras. Na data em que muitos utilizam para presentear com flores , são os espinhos que respingam nas mulheres negras , que vivem uma realidade bem diferente e cruel no país.
São elas que recebem pouco, têm menos acesso a serviços de saúde e educação, menor representatividade em cargos de liderança e na política e são as maiores vítimas de feminicídio. Por isso, já que nem tudo são flores e parabenizações, conversamos com especialistas negras para entender a situação da mulher que corresponde a 27,8% da população brasileira.
Mulheres negras recebem menos e metade estão em trabalhos informais
A desigualdade salarial no Brasil está basicamente ligada a duas variáveis: raça e gênero. Para cada R$ 1 que o homem branco recebe, uma mulher negra receberá menos de R$ 0,50. Pensando em centavos, parece uma diferença pouca, mas segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres negras recebem menos da metade que os homens brancos. Além disso, 47% das mulheres negras estão em trabalhos informais e apenas 8%, das que trabalham no mercado formal, estão em cargos de liderança, segundo estudos do Indique Uma Preta.
No mercado de trabalho, normalmente as mulheres negras se encontram em serviços gerais e domésticos. A administradora, cientista contábil e educadora financeira Dina Prates, conta que foi a primeira mulher em sua família que não trabalhou no serviço doméstico. “Minha mãe trabalhou, minha avó, minha bisavó… e isso é fruto do processo de escravidão porque não tinham outras oportunidades para as mulheres negras estarem inseridas no mercado de trabalho, logo, o serviço doméstico era o posto para elas”, explica.
Na visão da cientista, essa situação persiste em decorrência do legado histórico da escravidão no Brasil. “É reproduzir a ideia de que as mulheres negras são as que atuam em trabalhos subalternos, para o servir e que elas não têm direitos. A lei que regulamentou o trabalho doméstico é bem recente”, diz.
Para a advogada e ativista feminista antirracista Silvia Souza, as mulheres negras no mercado de trabalho informal e das trabalhadoras domésticas podem estar vulneráveis a trabalhos análogos à escravidão. “É um serviço desvalorizado, que não é possível fiscalizar as relações de trabalho porque acontecem dentro do ambiente doméstico. Além disso, neste governo foi extinto o Ministério do Trabalho, que tinha uma das funções de fiscalizar essas relações. As mulheres negras estão sujeitas a jornadas absurdas de expediente, sem registro de carteira, sem fiscalização e sem qualquer perspectiva de aposentar”, detalha a advogada.
Além disso, a crise da pandemia da Covid-19 acentuou ainda mais as desigualdades de gênero e raça. O impacto socioeconômico da pandemia é devastador para as mulheres e para a população negra, especialmente as quilombolas. Segundo o dossiê da ONU Mulheres, elas relatam dificuldades no acesso a ações urgentes, como o Auxílio Emergencial, equipamentos de proteção individual (EPIs) e informações adequadas.
Apesar de todo esse cenário, as mulheres negras, em sua maioria, chefiam os núcleos familiares e cuidam da economia da casa. Para Dina, isso é um reflexo do genocídio da população negra, em que os principais alvos são os homens negros. Mas, para a psicóloga e secretária executiva do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, Ìyá Sandrali De Campos Bueno, essa dinâmica familiar vem de uma tradição ancestral da própria cultura africana: “Mulheres negras sempre foram líderes e nós que mantemos esse sistema matriarcal dentro das famílias negras”, completa.
O descaso com a saúde da mulher negra no Brasil
Assim como no mercado de trabalho, a falta de acesso reflete também na saúde da mulher negra. Segundo pesquisa realizada na Escola de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, elas recebem menos anestesia no parto. Além disso, segundo dados de 2014 do Ministério da Saúde, são atendidas em menor tempo nas unidades básicas de saúde, em comparação às mulheres brancas.
Para a ginecologista e obstetra Larissa Cassiano, esse público está vulnerável à marginalização e ao racismo dentro da área médica, no chamado racismo institucional, que ocorre quando as instituições deixam de oferecer serviço qualificado às pessoas negras, podendo se manifestar por meio de normas, práticas e comportamentos discriminatórios.
Larissa explica que as restrições financeiras e as grandes jornadas de trabalho impedem que essa população tenha acesso ao lazer e a serviços de acompanhamento psicológico, o que pode vir a comprometer a saúde mental destas mulheres. “Conviver com os desafios de ser uma mulher negra e com o racismo pode ser um desafio mental para muitas”, explica.
Doenças como a diabetes, hipertensão arterial, miomas uterinos e câncer de colo de útero são mais suscetíveis em mulheres negras. A psicóloga Ìyá comenta que faltam estudos e temas relacionados à saúde das mulheres negras. As referências oferecidas em sala são brancas e eurocêntricas, que, inclusive, definiram as enfermidades.
“De quais doenças mentais e físicas estamos falando? Tem muitas doenças que são provocadas pelo sistema em que vivemos”, acredita. “Precisamos de pessoas que estudem a mulher negra e o pensamento dela e desconstruir muita coisa. Por isso que pessoas negras precisam fazer suas próprias pesquisas e entrar na academia”, explica.
Por último, as mulheres negras estão muito expostas à pandemia da Covid-19. Casos como a primeira morte por Covid-19 do Rio de Janeiro ter sido uma empregada doméstica, deixa ainda mais escancarado a situação de negligência e a necessidade de atenção à saúde da mulher negra.
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Larissa relembra que sem apoio e suporte do poder público, a situação dessas mulheres se agrava. “Sabemos que a maior parte dos trabalhos informais são feitos por negras, se a elas não forem dadas condições seguras para o trabalho ou suporte financeiro para ficarem em casa serão expostas”.
Educação
Em 2018, o IBGE mostrou que apenas 10% das mulheres negras completaram o Ensino Superior. Jaqueline Ialandalu, antropóloga e diretora do coletivo Di Jejê, conta que, por mais que as mulheres negras tenham de se afastar da educação escolar básica, são elas que retomam o estudo na vida adulta. “Nesse processo as políticas de ações afirmativas ou até as próprias cotas vão potencializar a entrada dessas mulheres nas universidades. Elas que estão buscando essa informação justamente porque já entenderam por meio de suas experiências pessoais que essa formação é o diferencial para sair da linha da pobreza”.
Algo que precisa e deve estar presente nas escolas e universidades é a educação antiracista, fundamental no combate ao preconceito e desigualdade no país. “As pessoas negras precisam ter educação racial para compreender a dinâmica do racismo no Brasil e entender como ele opera. Isso chama alfabetização racial, letramento racial, educação racial, e as pessoas brancas também precisam ter essa mesma formação. Elas que precisam ser antiracistas”, opina Jaqueline.
Ela ressalta que, para isso, é preciso ter uma educação de forma ampla e que não fale apenas de escravidão. Para as mulheres, ela destaca que essa educação pode possibilitar o fortalecimento da identidade racial e o reconhecimento dessa identidade como algo afirmativo e positivo.
As mulheres negras são as principais vítimas do feminicídio
Em 2020, um levantamento do Núcleo de Estudos da Violência da Univerdade de São Paulo (USP) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostraram que, no primeiro semestre do ano, 73% das vítimas de feminicídios foram mulheres negras.
Para Jaqueline, isso ocorre por dois fatores: a maioria da população brasileira ser negra e a violência, que é um processo cultural no interior de classes trabalhadoras e populares, que é a classe que a maioria dessas mulheres vítimas do feminicídio compõem. “Isso vai acarretar um número maior de feminicídio entre as mulheres negras porque elas são as mais vulneráveis a esses territórios violentos, com pouco acesso à informação e à instrumentalização”.
“Em vias de regras, esses espaços criam sempre uma narrativa de que o corpo da mulher negra está sujeito à violência o tempo inteiro. O tempo inteiro”, salienta. “O feminicídio tem um caráter muito forte na cultura que é o corpo passível para morte que é o corpo negro, da mulher negra, mais um acréscimo cultural presente na sociedade de que essa pessoa vale menos, de que esse corpo não tem nenhum valor social porque ele pode ser morto agredido, abusado e explorado”, completa.
Silvia Souza explica que, para uma mulher ser vítima de feminicídio, ela provavelmente já procurou ajuda e atendimento antes, mas o descaso com a população negra no Brasil impede um atendimento digno a quem procura por ajuda. “Infelizmente, em decorrência a um período de desumanização dessas mulheres que vêm do período escravocrata, ela não é vista como um ser humano”, diz. A advogada também ressalta a falta de preparo dos agentes públicos, que não conseguem identificar hematomas em pele negra.
As mulheres negras são a população carcerária que mais cresce
O número de mulheres presas cresceu 656% entre 2000 e 2016, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. O Brasil se torna o 4° país que mais prende mulheres, em sua maioria negras, correspondendo a 68%, segundo relatório do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).
A advogada Silvia Souza explica que a maioria das prisões no Brasil são enquadrados em crimes contra a Lei de Drogas e contra o patrimônio, que são os mais cometidos pela população negra. “A política criminal no Brasil deveria passar por uma reforma naquilo que ela entende como crimes prioritários a serem combatidos. Hoje há uma grande ênfase no combate do tráfico de drogas, que a gente traduz como “Guerra aos Pretos”. O maior número de crimes cometidos por população negra está nesse eixo. Não é estupro e homicídio, que é 13%”, explica.
Para ela, a nova Lei Antidrogas (aprovado em 2019) teve um impacto significativo nesse crescimento. “A gente vê um aumento maciço nesse número de mulheres negras a partir de 2006, com a nova lei, mas que não criou critérios objetivos e legíveis para estabelecer quem era traficante e quem era usuário”, explica a advogada.
Para ela, as estruturas de poder, como o direito, o judiciário e a política são organizados pelo racismo estrutural — isto é, sistema que classifica as pessoas brancas como grupo que detém o poder. “O Brasil foi o país que mais escravizou pessoas negras do mundo e foi o último país a abolir a escravatura. Nós não tivemos leis que possibilitassem a inserção de pessoas negras de uma forma digna na sociedade, mas tivemos uma segregação racial com mecanismos e aparelhamento do Estado”, diz.
“A gente tem mecanismos que reforçam os estereótipos raciais, que criminalizam a população negra. Quando não somos a filha, mãe, esposa de homens negros encarcerados, somos nós que estamos encarceradas. Quando é o companheiro que está encarcerado, ele geralmente tem visitas, mas as mulheres não. Existe uma espécie de punição social e as mulheres encarceradas normalmente são abandonadas e deixadas ali”, explica.
O genocídio das crianças negras e o impacto nas mães
Segundo o Mapa da Violência, a cada 23 minutos uma mãe perde um filho que é morto na periferia. São muitas Ágathas, Jenifers, Kauans, Kauês, Kethellens e João Pedros que foram levados sem explicações e arrancados dos braços de suas mães, vítimas do genocídio das crianças negras. “Toda mulher negra, mãe de uma criança negra, acorda e dorme todos os dias com medo de que seu filho seja morto”, afirma Jaqueline.
A antropóloga conta que tem medo toda vez que seu filho sai de casa sozinho. “Quando ele sai para levar o cachorro para dar a volta no quarteirão, eu peço para Exú trazer ele vivo porque eu não sei o que pode acontecer”, diz.
As mulheres negras também perdem o direito de serem mães e quando isso ocorre não tem nenhum apoio do Estado. A advogada Silvia Souza relembra do movimento Mães de Maio, que surgiu após policiais assassinaram mais de 400 jovens negros, afro-indígenas e pobres em 2006. “Nós estamos em 2021, o movimento Mães de Maio criou força e é o exemplo mais paradigmático de como as mulheres negras são atingidas pelo racismo estrutural que forma todas essas políticas genocidas do Estado”, pontua.