Separadas durante a pandemia, mães ficam sem receber auxílio emergencial
Mulheres que se separaram durante a pandemia enfrentam dificuldades para reaver o Auxílio Emergencial cancelado. Segundo o aplicativo Caixa Tem e o site do governo federal, a segunda rodada do benefício está limitada a um beneficiário por família. Com isso, mulheres que terminaram relacionamentos estáveis, oficializados ou não, acabaram perdendo acesso ao benefício.
Desde março de 2021, quando saiu o aviso oficial de que o auxílio emergencial ia ser depositado, foi informado que não seriam possíveis novos cadastros, mas que atualizações no cadastro estavam liberadas em datas específicas.Nestes casos, considerados um empate, os critérios de decisão são: mulher provedora de família monoparental; data de nascimento mais antiga e, para fins de desempate, do sexo feminino; e ordem alfabética do primeiro nome, se necessário.
Porém, o cruzamento de dados feito pelo DataPREV , empresa de tecnologia e informações da previdência, mostra falhas com perdas difíceis de verificar e recuperar.
Mães sem auxílio
“A gente não era casado no papel, mas tinha união estável. Como dividimos o mesmo endereço e temos um filho, nos registramos como casados. Tanto no meu cadastro, quanto no dele. Porém quando veio a nova rodada do auxílio, eu fui ver quando eu ia receber, se tinha sido aprovado, pois ele já tinha me comunicado que o auxílio dele tava ok. Eu pensei: ‘Bom, já aprovaram o dele, devem ter aprovado o meu também.’ Quando eu olhei no site do Governo, dizia que não tinha sido aprovado”, conta Larissa Freitas Soeiro, cozinheira.
Desde então Larissa, que mora em Porto Alegre, contestou e tentou alterar seus dados cadastrais , tanto pelo celular quanto pelo computador, conforme orientação de sua advogada, que cuida da sua separação e agora também do pedido do Auxílio Emergencial cancelado. Foi neste momento que ela descobriu que não era a única passando por esta situação.
Em Presidente Epitácio, interior de São Paulo, quem vive uma situação parecida é a costureira Priscila Gomes, mãe de três crianças menores de 10 anos. Ela e o ex-companheiro também tinham uma união estável. Quando a pandemia começou, Priscila fez o cadastro único e colocou ele como seu marido. Cada um recebeu seu benefício até dezembro de 2020. Em novembro eles já estavam separados, após 13 anos de união.
“Quando passou a fase vermelha na minha cidade e as coisas abriram em janeiro, eu fui na Secretaria de Assitência para atualizar o cadastro porque ele não estava mais junto comigo, ajudando. Eu não podia perder mais isso. Então fui lá, atualizei o cadastro, imprimi a lista dos familiares, eu e os meus três filhos, só isso no cadastro”, lembra Priscila, que ficou tranquila por ser tudo automático.
Você viu?
Um dia antes do início do pagamento da primeira parcela, ela abriu o aplicativo do Bolsa Família e viu que somente este benefício fora depositado. Nada do Auxílio Emergencial. Depois de passar o dia ligando sem sucesso para o 111 (canal de atendimento telefônico do Caixa Tem), ela acessou o site do Ministério da Cidadania, preencheu as informações de acesso e descobriu que ela não constava como beneficiária desta segunda rodada.
“Na primeira contestação que eu fiz constava que já tinha membro recebendo. Então eu mandei uma mensagem para o meu ex: ‘Você mexeu no seu cadastro pra fazer o pedido do auxílio?’ Ele respondeu que não e falou para eu consultar os dados dele. Constava que ele não poderia receber, porque ele não fazia parte do grupo do público-alvo. Quando eles abriram a segunda contestação, eu fiz e foi a mesma coisa, só que agora fala que a minha família não é elegível. Sendo que eu recebo Bolsa (Família), tô sozinha com as crianças”, diz Priscila, que atualmente depende da ajuda da mãe para conseguir se manter.
Violência patrimonial
A Rede Feminista de Juristas deFEMde explica que a subtração do Auxílio Emergencial após o fim do relacionamento caracteriza violência patrimonial. “Violência patrimonial é a retenção, subtração, destruição parcial ou total de dados, objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos da mulher como forma de forçar dependência e manter uma condição de subserviência dentro do relacionamento”, diz Raphaella Reis, liderança em ensino e pesquisa e gestora de comunicação da rede.
Ela explica que este tipo de violência é tipificada pelo art. 7º, IV da Lei Maria da Penha , mas ainda existem dificuldades na aplicação pelo estigma da mulher ser culpada, existindo uma presunção de que ela não é vítima de um golpe, mas sim sua arquiteta.
“Quando essa violência se manifesta no âmbito de famílias inseridas no CadÚnico – que é um programa assistencial destinado a famílias periféricas – recebendo Auxílio Emergencial, há uma participação do Estado na consolidação dessas violências, pois a família recebe conjuntamente. Os dados são cadastrados em bloco, e a mudança no relacionamento, mesmo formalizada, não produz atualizações na base de dados”, diz.
Segundo a especialista, wssa falta de atualização incentiva a violência patrimonial, já que cônjuges e companheiros subtraem o Auxílio Emergencial e impõem condições às companheiras e cônjuges para devolução ou repasse da cota-parte. Para tentar remediar a situação, estas mulheres são obrigadas a se dirigirem às unidades responsáveis pelo CadÚnico para retificar uma informação e manter uma base mínima de sustento e, muitas vezes, acabam recebendo negativas.
Ações em andamento
O governo do estado do Pará e o Ministério Público de São Paulo buscaram algumas medidas para contornar o problema, solicitando judicialmente a atualização automática de bases de dados ou a dispensa de visita presencial a unidades de atualização do CadÚnico. Porém, de acordo com Raphaella, isso não vai resolver o problema de todas as mulheres, já que a jurisprudêncianão será conhecida do público e acompanhar sua evolução será difícil.
“Estas são demandas atinentes ao Direito das Famílias, e processos familiares correm em segredo de justiça por lei. Existe uma possibilidade grande de já termos um desenho nefasto de jurisprudências favoráveis aos ex-companheiros e ex-cônjuges engajados em violência patrimonial durante a pandemia, quadro que levará anos para ser revertido no Brasil”, avalia.
Procurado pelo iG Delas, o Ministério da Cidadania não apresentou respostas ao problema até o momento da publicação desta reportagem. Também tentamos conversar com a DataPREV, que não retornou a nenhuma de nossas tentativas de contato.