Há pouco mais de um mês, é comum encontrar “A Mulher da Casa Abandonada” como um dos principais assuntos do momento nas redes sociais. O podcast da Folha de S.Paulo, com apuração e narração do jornalista Chico Felitti, se tornou um fenômeno midiático por esmiuçar a história de uma mulher, foragida do FBI por manter uma empregada doméstica em situação de trabalho escravo contemporânea nos Estados Unidos, que se esconde em uma mansão decadente em Higienópolis, bairro nobre da cidade de São Paulo.
O trabalho investigativo de Felitti o levou ao caso que envolve Margarida Bonetti e o marido, Renê Bonetti, que explodiu nos noticiários no início dos anos 2000. A vítima, uma empregada doméstica brasileira “dada de presente” pela família, é analfabeta e passou 20 anos em situação de trabalho forçado. A mulher era mantida em condições insalubres no porão da mansão do casal em Washington, teve atendimento médico negado para tratar de um tumor e sofreu uma série de maus tratos por parte, principalmente, de Margarida.
O intuito de “A Mulher da Casa Abandonada” é abordar a realidade nada distante da situação de escravidão à qual muitas empregadas domésticas são silenciosamente submetidas, mas também de trazer à tona o caso e a história por trás de quem vive na sinistra mansão em Higienópolis. Ou melhor, vivia, já que a procurada fugiu da residência no último fim de semana – período em que a casa abandonada pareceu alçar de vez o status de “ponto turístico”.
Agora, a fachada da mansão dos Bonetti está sempre ocupada por ouvintes e curiosos ávidos para conhecer o local. Pessoas subiram no muro, picharam o nome da vítima (mantido em sigilo no podcast) e gravaram dancinhas de TikTok em frente à casa, ostentando a presença naquele lugar.
Para Nathalie Rosário, advogada do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstica), a repercussão de “A Mulher da Casa Abandonada” causa tristeza. Para ela, a atenção do público parece ter ficado muito mais voltada para a infratora e pela “aura misteriosa” da mansão. “Fora do podcast, pouco se falou sobre como essa empregada está, se está segura, se foi acolhida e se teve acesso aos direitos dela”, afirma ao iG Delas.
“A sociedade não tem esse olhar atento para a vítima de racismo e escravidão. Mas teve com a infratora. A supremacia branca continua prevalecendo nesse sentido de enxergar aquilo que ela fez como algo a se fazer meme, como algo a ser levado na brincadeira. Se foge do ponto principal, que é a questão racial e que ainda existe esse tipo de situação”, complementa a advogada.
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Escravidão contemporânea
O ano de 2021 foi um dos que apresentaram o maior índice de pessoas encontradas em situação de escravidão contemporânea. De acordo com o Ministério do Trabalho e Previdência, foram quase 2 mil pessoas amparadas nessas condições. A Organização Nacional do Trabalho aponta que foram 60 mil pessoas libertadas nos últimos 15 anos.
Melina Girardi Fachin, advogada, pesquisadora e co-autora do livro “Constituição e Direitos Humanos” (disponível pela editora Almedina Brasil), lembra ainda que, nos últimos dez anos, o Brasil recebeu duas condenações da Corte Interamericana de Direitos Humanos por escravidão contemporânea.
No âmbito do trabalho doméstico, as mulheres, por si só, representam 92% das trabalhadoras dessa categoria; destas, 65% são negras, segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese). “Além de negras, essas mulheres, em sua maioria, têm baixa escolaridade e são de baixa renda”, aponta Fachin.
Melina explica que a a forte desigualdade social e o racismo estrutural brasileiro são os dois principais fatores na conjuntura brasileira que propiciam a continuidade da escravidão contemporânea no país. “É o que mantém esse sistema perverso que continua escravizando e instrumentalizando pessoas. O perfil das vítimas já nos mostra a realidade discriminatória que, ao mesmo tempo, alimenta esse sistema e é fruto dele”.
“As empregadas se submetem a essas condições por uma questão de racismo estrutural”, afirma Rosário. “É um ciclo vicioso que atinge mais as mulheres negras e é passado de avó para mãe, de mãe para filha. Por vezes, alguém precisa romper esse ciclo para que exista uma ascensão profissional. Não é que a categoria não seja importante, porque é. Mas é necessário que exista um trampolim para que trabalhadoras tenham acesso aos estudos e possibilidades de crescer prifissionalmente”.
Por mais que o regime escravocrata pareça ser uma página virada no contexto atual do Brasil, Rosário aponta que a raiz da categoria segue os moldes dele, já que elas surgiram no período colonial. “Vivemos uma falsa abolição em relação ao emprego doméstico. Com todo avanço legislativo, ainda existem empregadas sendo silenciadas, sem o mínimo de direitos. Esses casos existem e não são pontuais”, afirma a advogada do sindicato.
Rosário e Fachin apontam que são características do trabalho escravo contemporâneo o trabalho forçado, jornadas exaustivas, situações de servidão por dívidas (como trabalhar em troca de moradia, por exemplo), condições degradantes, falta de higiene, alimentação e assistência médica, cerceamento dos direitos de ir e vir e falta de remuneração.
Rosário aponta que existe um padrão que atrai as vítimas para essa situação de trabalho, caracterizado por uma situação de hipervulnerabilidade. Em casos que acabam em situação de escravidão contemporânea, o perfil das vítimas é de mulheres que foram despejadas ou não tinham um lar.
“O empregador se aproveita dessa situação vulnerável para oferecer um ambiente. Só que essa mulher trabalha e recebe em retorno tão somente o lar, o famoso quartinho da empregada, onde ficam isoladas em condições precárias. Elas perdem acesso social a suas famílias, então não há acesso ao que está acontecendo”, indica.
Fachin aponta que as vítimas ficam tão imersas nesses ambientes e são tão afastadas do convívio social que não conseguem pedir ajuda ou buscar proteção. “Devido à própria condição de dominação em que essas pessoas se encontram e pela ausência de consciência e compreensão dos próprios direitos, justamente por serem pessoas de baixíssima escolaridade e que vieram de um cenário de hipervulnerabilidade, há poucas chances de que essa pessoa faça a denúncia”. O medo também é um fator predominante para impedir que a vítima denuncie.
“Então, é muito complicada a forma como, hoje, a internet repercute esses casos de uma forma engraçada. É um crime hediondo. Tem uma família que sofreu e uma pessoa que perdeu a vida toda. É importante refletir sobre qual mensagem precisamos aprender por trás disso para evoluir como sociedade”.
Rosário complementa que, por ser um trabalho realizado na casa de alguém, fazer o resgate é ainda mais complicado devido ao direito de inviolabilidade do lar, que impede o acesso à residência sem que exista uma denúncia oficial. “Falta uma fiscalização do poder para afastar essas trabalhadoras que estão sofrendo essas condições”.
Fachin explica que existem diversas divisões responsáveis pela fiscalização de trabalho e pelo mapeamento de pessoas nessa situação, sendo o Ministério Público do Trabalho o principal. No entanto, há poucos quadros com acesso aos casos que ocorrem em determinadas regiões brasileiras, principalmente o interior.
A advogada acrescenta que as estruturas judiciárias frequentemente desqualificam essas denúncias; da mesma forma que o crime de racismo é negligenciado. “Viemos em um país que não prestou contas do seu passado escravocrata. Isso acaba alimentando o mito da democracia racial que faz com que a sociedade, incluindo autoridades públicas, se autorize a dizer que não há racismo no Brasil ignorando os dados que mostram essa realidade”.
“É fundamental que esse tema seja colocado em pauta porque mexe na estrutura do nosso modo de ser sociedade. Temos leis. Temos condenações internacionais. É inconcebível que estejamos, em 2022, presenciando cenas que remontam a um passado oitocentista. Temos que não perder a capacidade de nos indignar com esse absurdo e cobrar dos cargos responsáveis e do poder público que esses órgãos sejam mais robustos e que exista a fiscalização da implementação da lei”, alerta Fachin.
Precarização do trabalho doméstico
Em 1988, a Constituição Federal garantiu a proteção de empregados de empresas comuns. Levou 17 anos para que existisse uma legislação que assegurasse o mesmo direito às empregadas domésticas. A Lei Complementar 150 regulamenta, sancionada em junho de 2015, entre outros direitos, o seguro-desemprego, fundo de garantia, aposentadoria, jornada de trabalho de 44 horas semanais.
“Infelizmente, a nossa constituição fazia essa discriminação, o que mostra como o direito, as normas e as leis também precisam se adatar e correr atrás para dar respostas mais robustas a essas pessoas”, diz Fachin. Rosário, no entanto, afirma que a lei, por si só, não atingiu o resultado esperado, já que a cada dez empregadas domésticas brasileiras, apenas três são registradas.
Sem o registro, é ainda mais difícil entrar com um processo para reaver todos os direitos que não foram assegurados, já que essas profissionais, geralmente, recebem o pagamento em mãos e não têm testemunhas. “Essas desvantagens favorecem o empregador doméstico”.
Outro motivo que propicia essa relação de trabalho é a falsa mistura entre relação profissional e pessoal. “O empregador afirma que a empregada é uma figura ‘parte da família’ e usa desse atributo para deixar de cumprir um direito dela. Existe essa máscara de que há uma benevolência do empregador ao contratar uma empregada doméstica”.
A precarização do trabalho doméstico é efeito direto da desvalorização dessa atividade e das profissionais. Tanto no caso de precarização como de escravidão, Rosário aponta que a reação da sociedade é, desde sempre, de olhar para o outro lado. Essa postura coloca as trabalhadoras como não dignas de direitos e amparo; além de estarem atreladas aos rótulos racistas e patriarcais que perpetuam o silenciamento e invisibilização da classe.
Marta*, 50, trabalha como empregada doméstica há 15 anos e lembra de ter vivido dias de aflição na primeira casa de família em que trabalhou. Ela ficou no cargo por dois anos e, ao longo do tempo, presenciou intrigas, recebeu acusações e foi vítima de abusos psicológicos causados pelo casal de empregadores.
Ela lembra que trabalhava com uma outra colega, que cuidava da cozinha da mansão, e que as duas só tinham autorização para fazer refeições numa mesa da área externa. A área, que tinha teto coberto, tinha laterais abertas. Elas tinham que ficar ali mesmo no frio.
O casal era de difícil convivência. A mulher sentia ciúmes da relação das filhas do marido com as empregadas e as acusava de oferecer tratamento diferenciado para elas. Alguns dias dava “bom dia”; em outros, ignorava as funcionárias. “Ela era advogada, então sabia os limites. Era tudo muito sutil”, diz a empregada sobre os insultos e a pressão psicológica diária.
No caso do homem, o problema era a comida. Por mais que a alimentação esteja assegurada para as empregadas domésticas, Marta preferia almoçar em casa, que era próxima do local de trabalho, para almoçar com a filha. Só almoçou na mansão uma única vez, mas nunca mais o fez ao perceber que os patrões “fecharam a cara”. As únicas frutas que poderiam comer era banana, já que o casal não gostava.
Para evitar problemas, ela e a colega faziam vaquinhas para comprar leite, café, açúcar e pão para o café da tarde. Por vezes, o homem se sentava à mesa e comia os ingredientes comprados por ela. “Ele comia nosso pão e tomava do nosso café. Não tava nem aí”, diz.
Para alguns desses cafés, o patrão já levou ingredientes como geleias e requeijão como “cortesia” para as empregadas. Marta afirma que a data de validade de todos os produtos estava vencida há, pelo menos, seis meses.
Entre outras situações que passou, Marta relata que foi acusada de entupir o vaso sanitário de um dos lavabos da mansão em um fim de semana em que ela sequer esteve na casa. Era pedido que ela fizesse horas extras ou atividades que não constavam no seu escopo, como limpar a piscina ou organizar o jardim – eram as únicas ocasiões em que os padrões ficavam mais amigáveis.
Na residência seguinte em que trabalhou, era obrigada a cuidar dos animais domésticos dos empregadores quando eles viajavam, muitas vezes sem aviso prévio e, em todos os casos, sem receber nada a mais. “Principalmente no final do ano, jogam a responsabilidade em cima das empregadas. Eles pedem na primeira e na segunda vez. Da terceira em diante, você chega e já estão com as malas prontas. Tive que desmarcar vários compromissos para ir todo dia em casa, faça chuva ou faça sol, para cuidar dos animais”.
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Por mais que passasse por abusos e recebesse falas atravessadas, Marta aponta que sempre se impunha diante dos patrões. Delimitava o limite do horário, dizia quando discordava de algo e, quando acusada de algum ato que não cometeu, respondia a altura. “Eles falavam que eu era mesmo mais esperta, então eu tinha outro tratamento”.
A colega de trabalho de Marta no primeiro emprego era a que mais sofria represálias. Os patrões pediam para que ela cozinhasse um prato no almoço e, quando o levava pronto, pediam outro. Era comum que recebesse gritos, ofensas e trabalhasse chorando. Marta relata que essa mulher ficou por mais tempo trabalhando na mansão, e que chegou a passar tanto nervoso que, um dia, desmaiou de nervoso. “Eles viram e não ligaram. Não socorreram ela, não”, diz.
Como denunciar?
Tanto nos casos de precarização de trabalho como de situação de escravidão contemporânea, é possível fazer as denúncias anônimas pelo Disque Direitos Humanos, o Disque 100. O Sindoméstica recebe denúncias anônimas, junto ao Ministério Público do Trabalho, para fiscalização e acolhimento pelo telefone 0800 77 35 900.
Pela internet, é possível denunciar irregularidades trabalhistas pelos canais digitais de denúncia da Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, pelo link https://denuncia.sit.trabalho.gov.br/home . Nos casos de escravidão contemporânea, o canal de denúncia é o Sistema Ipê ( https://ipe.sit.trabalho.gov.br/#!/ ).
*O nome foi alterado para preservar a identidade da fonte.
Fonte: IG Mulher