Qual é o ciclo de violência que precede a ocorrência de um feminicídio? É essa pergunta que a produção brasileira “Não Foi Minha Culpa” busca responder em 10 episódios independentes, todos baseados em casos reais. A série, que chega nesta quarta-feira (10) no Star+, se baseia no ponto de vista de mulheres de perfis diferentes para demonstrar em lentes macro como as minúcias do dia a dia podem se tornar mortais.
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O lançamento da plataforma tem como gancho o aniversário da Lei Maria da Penha , que completou 16 anos no último domingo (7), e o Agosto Lilás, que marca o mês de conscientização pelo fim da violência de gênero. Além da edição brasileira, o projeto audiovisual também foi gravado na Colômbia e no México.
As histórias são contadas por um elenco diverso e estrelado, com foco em abordar, principalmente, o ponto de vista das mulheres que tiveram suas vidas interrompidas. Nomes como Bianca Comparato, Lorena Comparato, Armando Babaioff, Malu Mader, Aline Dias, Fernanda Nobre, Robson Nunes, Rômulo Braga, Virgínia Rosa e Daniel Blanco são apenas alguns que participam dos episódios.
“Só conhecemos as histórias dessas mulheres pelo jornal ou pelos programas de televisão. Até em grupos de WhatsApp se compartilham vídeos de câmeras de segurança. A gente queria fazer o oposto disso. Queríamos saber quem era aquela mulher, que história era aquela e como aquele relacionamento chegou naquele lugar”, afirma Susanna Lira, que dirigiu todos os episódios da série, ao iG Delas.
Além do feminicídio em si, a série exlpicita as principais nuances das violências físicas, psicológicas e patrimoniais; passando ainda por abuso e assédio sexual, estupro, transfobia, chantagem emocional, estelionato sentimental e até divulgação não consensual de imagens íntimas. Por esse motivo, os episódios falam por nuances. Aqui, a ideia é escancarar que um mero gesto de cabeça ou uma frase solta podem ser o pontapé ou a continuação de um ciclo violento.
Captar essas nuances foi uma das partes mais desafiadoras do roteiro. É o que explicam as roteiristas Juliana Rosenthal e Michelle Ferreira. Todo embasamento desses comportamentos e violências foi feito com o apoio de uma psiquiatra.
“Nossa grande oportunidade com essa série era mostrar como chega do amor para a morte. Já sabemos que a morte acontece, mas como? Na nossa pesquisa, vimos um ciclo disso, sinais muito repetidos de como isso acontece. Existe um modus operandi e é muito importante que todos os conheçam para que se fale, discuta, alerte e combata da forma certa”, conta Rosenthal.
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O intuito da diversidade de tramas é apontar, justamente, que não existe um perfil específico de mulheres vítimas, tampouco de homens agressores. Com isso, cada episódio aborda mulheres de classes sociais, identidades e gênero e contextos raciais diferentes – bem como diferentes configurações de relação de poder.
As vítimas em “Não Foi Minha Culpa” vão desde a mulher negra e nordestina que quer assumir um projeto importante na empresa onde trabalha e acaba violentada pelo diretor da empresa até a namorada branca do simpático galã de novela que é brutalmente assassinada por ele.
Susanna afirma que o intuito foi abordar a maior diversidade de perfis de vítimas e agressores para enfatizar que a violência de gênero pode atravessar qualquer mulher. “Dificilmente uma mulher assiste e não se identifica em algum momento. Essa diversidade contribui para que não fiquemos em um grupo isolado. A pessoa pode pensar que não sofre nada disso mas, ao assistir um ou dois episódios, vai se deparar com situações familiares a ela”
“Tem quem pense: ‘Isso não vai acontecer comigo, ninguém vai me matar desse jeito’. Mas, na verdade, acontece, sim. Acontece com sua amiga, mãe, irmã e vizinha”, complementa a atriz Lorena Comparato ao iG Delas.
Para dar ainda mais ênfase a essa ideia, todas as histórias de feminicídio narradas na série são interligadas temporalmente com o período de Carnaval. “Queríamos mostrar que a violência contra a mulher é tão democrática quanto um bloco de Carnaval e fazer dele um microcosmo do nosso país, onde um grupo diverso em um mesmo espaço sofreu violências”, explica Juliana Rosenthal, que roteirizou os episódios com Michelle Freitas.
“Em um bloco de carnaval circulam todas as classes sociais e tipos de mulheres. É uma síntese do Brasil. Uma sofre porque a fantasia está curta, outra porque foi para o Carnaval escondido dos pais. Independente do que estamos fazendo, estamos ‘erradas’ de alguma maneira. Essa é uma razão dada para justificar o feminicídio”, complementa Lira.
Papel informativo
Bianca Comparato afirma que a existência de “Não Foi Minha Culpa” se mostra importante pelo atual momento de perda de direitos vividos no mundo todo e pelos altos números de casos de feminicídio no Brasil. O país é o quinto no ranking global em mortes violentas de mulheres. “Finalmente a gente vai poder falar sobre isso abertamente e ter essas histórias retratadas do ponto de vista das mulheres”, diz a atriz.
Na mesma linha, Lorena explica que o seriado é didático ao apontar quais são as dores, violências e sofrimentos aos quais as espectadoras devem ficar atentas. “É para mostrar claramente como certas microviolências podem ficar extremamente graves e até fatais. As vozes das mulheres de minorias sociais estão sendo gritadas há muito tempo que estão tendo a oportunidade de serem ouvidas”, pensa.
Bianca e Lorena integram o décimo e último episódio do seriado, que narra a história de duas mulheres, Priscila (Lorena) e Carol (Bianca), que moram no mesmo prédio durante o boom da pandemia da Covid – período em que os casos de feminicídio e violência de gênero aumentaram. Priscila é a atual namorada de Fernando (Babaioff), um ex-namorado com comportamento muito agressivo, mas que aparenta ser “o cara gente boa” no ciclo social. Na pandemia, Fernando e Priscila ficam isolados juntos, o que faz com que a moça experimente diversos níveis de violências que progridem com o passar do tempo.
Ao mesmo tempo, Lorena e Bianca, que são irmãs na vida real, mostram em tela a necessidade de estender a mão para essas vítimas para que essa violência seja reconhecida antes que a vida dessa mulher seja interrompida. Na série, a personagem de Bianca é quem ampara a vítima ao ouvir as violências.
“Existe um pacto social velado de que briga de marido e mulher ninguém mete a colher. Até certo ponto, tem coisas que são da intimidade do casal, mas quando as coisas passam do limite é muito importante quem está perto estender a mão. Se alguém no prédio escuta alguma coisa, pode dizer: ‘Eu escutei, não foi legal, você tá bem?’. Essas pequenas coisas dão uma força tremenda para quem precisa”, explica a atriz.
Já Lorena analisa que sua personagem vem como uma maneira de mostrar que as vítimas podem ter força. As cenas em que ela resiste às violências do namorado são as mais fortes de seu episódio, mas, ela conta, uma das mais difíceis de gravar.
“Eu não conseguia fazer a cena de falar ‘não’. Juntei toda força do mundo de dentro de mim para conseguir ir contra esse cara, porque realmente existe uma coragem absurda. Usei uma força que não sei de onde veio. Acho que expurguei muita coisa nessa série, saí dela dilacerada por isso”, diz a atriz.
Também é para os homens
Para trazer o personagem Fernando à tela, o ator conta que trabalhou muito com as sutilezas e diz ter se inspirado nas histórias que ouviu de amigas, da irmã, da mãe e da própria Lorena, com quem divide o maior tempo de tela. Babaioff também se inspirou nos comportamentos que o próprio pai teve no trato com a irmã e a mãe dele, além da forma como ele foi socialmente criado como um homem.
“Usei minha própria experiência desse universo patriarcal em que estamos inseridos para mostrar como uma pessoa socialmente tão interessante pode se comportar daquela maneira, a ponto de transformar as mulheres em loucas ou ter suas atitudes questionadas”, afirma Babaioff.
Susanna afirma que, no processo de criação da série, era importante mostrar as áreas cinzas do comportamento dos homens para, justamente, reverter o tipo de pensamento de que “a mulher fica com o abusador porque quer”.
“A gente não podia mostrar apenas o cara completamente violento, porque como uma mulher fica com um cara que é só violência? Ele tem o outro lado que faz coisas legais, que finge que protege e valoriza, que seduz… Precisamos mostrar as nuances porque elas são muito sutis. Na maioria das vezes, esses homens são assim”, enfatiza a diretora.
“Esses homens passam pela patologia social do machismo e do patriarcado. Eles são contraditórios porque estão inseridos numa cultura misógina. Eles aprendem a nos desprezar, nos objetificar e, quando isso vai para o extremo, é claro que o resultado é violento. Esse machismo e misoginia está nas mulheres e nos homens e precisa ser cortado pela raiz com a educação”, finaliza Ferreira.
Para Babaioff, essa é uma série que também serve para que os homens se identifiquem (ou entendam comportamentos expressados por seus colegas), compreendam a gravidade dessas violências e reflitam. “Espero que a série inspire as mulheres, mas aos homens também para que possam reverter o caminho desses números tão horríveis de feminicídio no Brasil”, acrescenta Bianca.
Fonte: IG Mulher