Covid avança em aldeias: um em cada três índios Yanomami e Ye’kwana foi exposto ao coronavírus
O coronavírus continua a avançar em territorios indígenas, mesmo depois de o Supremo Tribunal Federal determinar, há quatro meses, que o Estado tomasse providências para conter a pandemia de covid-19 entre a população indígena.
O número de casos confirmados na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima e no Amazonas, saiu de 335 para 1,2 mil entre agosto e outubro, um aumento de 250%, segundo relatório publicado nesta quinta-feira (19), produzido pelo Fórum de Lideranças da TIY e pela Rede Pró-Yanomami e Ye’kwanaum.
Um em cada três membros dos povos yanomami e ye’kwana no território já foram expostos ao coronavírus, segundo o relatório, e os casos já atingem 23 das 37 regiões da terra indígenas.
“Não fizeram nada, não tem ação do governo. Teve duas visitas interministeriais, mas isso não significa que estão fazendo essas ações (determinadas pela Justiça). Tinham que ter feito a barreira sanitária, não fizeram”, conta Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami.
Maurício está de luto: um parente de mais de 50 anos morreu nos últimos dias com suspeita de covid-19, e o avanço da doença o preocupa.
Com área equivalente à de Portugal, a Terra Indígena Yanomami abriga cerca de 26,7 membros dos povos yanomami e ye’kwana, espalhados por 331 aldeias — incluindo aldeias isoladas, que são mais vulneráveis a doenças.
Um estudo produzido em junho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto Socioambiental (ISA) classifica os yanomami como “o povo mais vulnerável à pandemia de toda a Amazônia brasileira”.
As lideranças indígenas também afirmam que o baixo número de testes feitos pela Secretaria de Saúde indígena implica que na “realidade o número de contaminados pode ser muito maior”. Dados do Ministério da Saúde mostram que em 11 regiões do território, menos de 10 testes foram feitos e em três localidades, nenhum exame de covid foi realizado.
No meio do ano, o governo contestou a determinação do STF para que medidas como criação de barreiras sanitárias e ações contra a invasão das terras indígenas fossem tomadas. A decisão do STF foi dada após um pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em conjunto com seis partidos.
Poluição trazida pelo garimpo prejudica a caça e outras atividades tradicionais, como banho no rio
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Ao mesmo tempo, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, disse que pandemia estava “sob controle”.
O Planalto argumentou que “não se revela acertada a afirmação de que o Governo Federal estaria sendo omisso no tocante às medidas necessárias para evitar a exposição de populações indígenas à covid-19” citando medidas tomadas pela Funai, como a determinação de contato entre agentes da Funai seja “restrito ao essencial” e a “disponibilização de um canal de atendimento” para demandas específicas relacionadas ao coronavírus.
Garimpo é principal ameaça
A principal ameaça à saúde indígena é a presença de cerca de 20 mil garimpeiros em minas ilegais dentro do território, segundo o estudo da UFMG e o relatório do Fórum de Lideranças da TIY.
“Vivemos de novo uma grande invasão garimpeira e, com ela, chegam as epidemias, como aconteceu no passado”, diz o relatório. O avanço do garimpo foi documentado neste ano por imagens de satélite.
Rico em depósitos de ouro, o território é cobiçado por garimpeiros desde a década de 1970. A partir de então, várias doenças levadas por não indígenas assolam os povos locais.
Neste ano, além da covid-19, também houve uma expansão dos focos de malária, que, em conjunto com a pandemia, deixam em situação grave a já frágil assistência à saúde indígena.
O médico e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Paulo Cesar Batista aponta, em um artigo incluso no relatório, que os povos também sofrem com doenças como oncocercose, tracoma, doença diarreica aguda, hepatites virais e tuberculose.
O garimpo também prejudica a subsistência das comunidades indígenas, afirma Maurício Ye’kwana.
“Alguns lugares têm um alto índice de desnutrição porque, por causa do garimpo, a caça é prejudicada, o rio fica poluído”, explica o líder. “Nossa preocupação é que o povo yanomami tem baixa imunidade. Chegam a malária e a pandemia ao mesmo tempo, é muito grave, o povo está sendo afetado. Se não tivessem garimpo, não teria essas doenças.”
Sumiço de corpos e cloroquina
Episódios de diversos tipos de violência sofridos pelas comunidades em meio à pandemia foram compilados no documento produzido pelas lideranças do território.
Em junho, três bebês indígenas que morreram com suspeita de covid-19 em hospitais públicos de Roraima ficaram desaparecidos — até vir à público que as crianças haviam sido enterradas em um cemitério em Boa Vista (RR), a milhares de quilômetros de suas comunidades, sem que os pais ou qualquer representante yanomami fosse avisado.
O enterro é considerado inaceitável entre os yanomami. Sofrendo, as mães imploraram para que os corpos fossem devolvidos e pudessem passar pelos rituais funerários apropriados nas aldeias.
“Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”, disse uma das mães ao jornal El País, na época.
O garampo tem se aproximado de comunidades isoladas como a Moxihatëtëma, subgrupo yanomami que vive em isolamento voluntário
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Outro episódio citado no relatório foi a distribuição de quase 50 mil comprimidos de cloroquina na TIY e na Terra Indígena Raposa Serra do Sol para combater a pandemia de coronavírus — a cloroquina é um remédio para malária e não há nenhuma comprovação científica consistente de que ela funcione contra a covid-19.
O governo depois afirmou que a distribuição era para uso contra a malária, mas documentos do Ministério Público Federal de Roraima, que investigou o caso, contradizem a versão do governo — apontando que os remédios faziam parte do kit de combate ao coronavírus.