Eleições municipais: derrotas de aliados mostram que ‘Bolsonaro não é mais o mesmo de 2018’, diz cientista político
A eleição foi municipal, mas a ida dos brasileiros às urnas em 2020 forneceu amostras de novos caminhos na política nacional e até internacional.
A avaliação é do cientista político Sérgio Abranches, para quem “a pandemia de coronavírus cortou o processo de polarização” que nos últimos anos levou à ascensão no mundo de políticos que ajudam a dar nome ao seu livro mais recente, O tempo dos governantes incidentais.
O presidente Jair Bolsonaro é um destes políticos que aposta na polarização — uma orientação que, segundo Abranches, pode estar datada. Para o analista, a derrota de candidatos que o presidente apoiou nas eleições municipais indica que seu fôlego para uma possível candidatura à reeleição em 2022 ficou mais fraco.
“O eleitorado indica que está procurando governantes mais estáveis, mais responsáveis, experientes e certamente que dão valor à ciência e respeitam a doença (a covid-19). E a rejeição ao Bolsonaro está muito associada a isso, a resposta dele à doença”, diz o cientista político, autor também de Presidencialismo de coalizão – Raízes e evolução do modelo político brasileiro e A era do imprevisto, entre outros.
“Continuaremos lutando no ano que vem com a pandemia e com a crise econômica. É um cenário muito adverso à polarização e às opções da extrema direita.”
Na contramão da polarização, o analista destaca o “ensaio” em Fortaleza de uma frente ampla que uniu diferentes partidos e lideranças políticas na eleição municipal e que poderá ser reproduzida com movimentos semelhantes em 2022.
Particularmente no campo da esquerda, Abranches aponta para o fracasso do PT nas eleições municipais deste ano e destaca a ascensão do PSOL e Guilherme Boulos em São Paulo — que teve uma espécie de derrota vitoriosa, na avaliação de Abranches.
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil — Algum resultado das eleições municipais serve com uma espécie de termômetro para a política nacional, para o que pode acontecer na eleição presidencial de 2022, por exemplo?
Sérgio Abranches — Um caso importante é o de Fortaleza, em que se ensaiou uma frente ampla contra um candidato que era claramente bolsonarista (Capitão Wagner, do PROS, teve apoio expresso de Bolsonaro). Ciro Gomes (PDT) e Tasso Jereissati (PSDB) se juntaram ao José Sarto (PDT, candidato eleito), que teve também apoio do PT, PSDB, entre outros.
Aliás, os dois candidatos com mais cara de Bolsonaro, que melhor representavam as posições dele, em Fortaleza e em Belém do Pará (onde Edmilson Rodrigues, do PSOL, derrotou o Delegado Federal Eguchi, do Patriota), perderam para a esquerda — com apoio de partidos do centro democrático. São situações que já mostram uma mudança importante (na política nacional).
Para o cientista político Sérgio Abranches, eleição em Fortaleza foi ‘ensaio’ de frente ampla contra o bolsonarismo
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Uma coisa é a esquerda se unir de um lado, o centro de outro, a direita de outro. Isso faz blocos, não frentes. Agora, a frente ampla é aquela que atravessa o campo político-ideológico. Isso talvez se torne muito importante ao longo do ano que vem e no próximo, na preparação para as eleições de 2022.
Não é que a gente voltou ao quadro pré-2018; é que a gente avançou para um quadro novo.
BBC News Brasil — Como já indicou o primeiro turno, a eleição municipal de 2020 se consolida como uma derrota para Bolsonaro?
Abranches — Com certeza. O fato dele de repente ter começado a pedir votos muito no interior, muito nos grotões, mostra a fraqueza dele.
Fica muito evidente nas pesquisas Ibope e Datafolha que, em praticamente todas as capitais, a popularidade de Bolsonaro está caindo muito.
Quando você vê a reprovação do presidente aumentando em todos os Estados, quando vê os candidatos que ele apoiou sendo derrotados fragorosamente, como foi com Crivella no Rio (Marcelo Crivella, derrotado no segundo turno por Eduardo Paes, do DEM) e Celso Russomanno em São Paulo (derrotado no primeiro turno), claramente vê um enfraquecimento.
Bolsonaro já não é mais o mesmo de 2018 e certamente em 2022 não consegue reproduzir o que fez em 2018.
Outro aspecto (observado nesta eleição) é que a rejeição ao PT continua muito forte.
BBC News Brasil — O PT também sai derrotado desta eleição?
Abranches — Com toda a certeza o PT, Lula, Bolsonaro e seus seguidores foram os maiores derrotados nessa eleição.
O PT tem que aprender a viver com novas lideranças dentro dele, tem que permitir a ascensão de novas lideranças. Não pode ficar preso eternamente ao Lula. E o próprio Lula tem que entender que o papel histórico dele mudou. Seu papel como presidente já se esgotou, e o papel histórico dele agora é ajudar o PT a encontrar um caminho novo.
Em São Paulo, com o desgaste do PT e o desempenho pífio de Tatto (Jilmar Tatto, candidato do PT à capital paulista derrotado no primeiro turno, com menos de 9% dos votos), o PSOL passou a fazer o contraponto do PSDB à esquerda. Na cidade de São Paulo, o PSOL ganhou uma enorme musculatura, fazendo a maior bancada da Câmara Municipal junto com o PSDB. É surpreendente porque o PSOL nunca tinha concorrido de forma muito competitiva à Prefeitura de São Paulo.
BBC News Brasil — E como avalia o saldo desta eleição para Guilherme Boulos (candidato do PSOL à capital paulista derrotado no segundo turno por Bruno Covas, do PSDB)?
Abranches — O Guilherme Boulos fez uma campanha surpreendente, muito bem feita, e conseguiu ir para o segundo turno.
Perder com 40% (dos votos) é daquelas derrotas que projetam liderança.
São derrotas exemplares porque revelam uma liderança emergente que mesmo não tendo conseguido chegar à vitória, tem uma série de características que a população está buscando naquele campo — no caso (de Boulos), a esquerda.
Acho que isso aconteceu com o Lula contra o (Fernando) Collor (na disputa pela presidência em 1989); e com Fernando Henrique Cardoso na derrota para a prefeitura de São Paulo (em 1985).
Tem certas vitórias que são menos importantes do que certas derrotas.
PSOL e o Boulos não têm mais condições de serem tratados como satélites do PT. E acho que a mesma coisa é verdade, em menor escala, com relação à Manuela (D’Avila, do PC do B, derrotada no segundo turno por Sebastião Melo, do MDB) em Porto Alegre. É uma estrela emergente, foi vice do Haddad (Fernando Haddad, candidato do PT à presidência em 2018) e que não foi contaminada pela rejeição ao PT. E isso conta também para dar ao PC do B um pouco mais de luz própria.
E o segundo turno em São Paulo foi a disputa mais civilizada que teve no Brasil inteiro — o Covas e o Boulos fizeram uma campanha baseada principalmente em seus programas de governo, na suas divergências políticas.
BBC News Brasil — A vitória de Covas em São Paulo é também uma vitória de João Doria (governador de São Paulo pelo PSDB e de quem Covas era vice-prefeito na eleição de 2016)? Isso poderia aumentar a força de Doria caso ele se confirme como candidato à presidência em 2022?
Abranches — O Covas foi eleito mais por causa dele do que pelo Doria, porque o Doria está com uma avaliação muito negativa na cidade de São Paulo.
E o Covas não trouxe o Doria para a campanha dele, só agora no discurso da vitória.
Em São Paulo, Doria posa ao lado de Bruno Covas, que foi reeleito prefeito na maior cidade do país
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Acho que de qualquer forma o Covas, o Doria e o Eduardo Leite (governador do Rio Grande do Sul, cujos aliados conquistaram muitas prefeituras no Estado) ajudam a recuperar o PSDB da trajetória de declínio que vinha acelerada. Por outro lado, a vitória do Covas não unifica o PSDB, porque o partido continua dividido.
BBC News Brasil — No primeiro turno, alguns analistas observaram que o eleitorado parecia estar buscando candidatos que representassem a estabilidade, diante das turbulências trazidas pela pandemia de coronavírus e por um cenário político e econômico instável. Você concorda?
Abranches — No primeiro turno, todos os prefeitos que se comportaram mal foram demitidos (pelo voto). E todos que se saíram bem na questão da pandemia, como em Belo Horizonte, foram eleitos ou fizeram sucessor no primeiro turno.
O Rio foi um caso mais específico, sobrou o Crivella — que foi agora demitido no segundo turno.
A taxa de reeleição foi muito alta nessas eleições, e o que fez com que o candidato não se reelegesse foi se ele teve um comportamento destoante no que diz respeito à pandemia — se não promoveu o isolamento, ações de saúde, não foi reeleito. Os que se comportaram bem na pandemia foram reeleitos.
O eleitorado indica que está procurando governantes mais estáveis, mais responsáveis, experientes e certamente que dão valor à ciência e respeitam a doença.
E a rejeição ao Bolsonaro está muito associada a isso, a resposta dele à doença.
A pandemia cortou o processo de polarização. Ela fez um desvio no processo histórico, porque em vez de dividir o país entre “nós” e “eles”, daquele jeito da polarização radicalizada, passou a separar aqueles que respeitam a pandemia e os que seguiram o caminho do Bolsonaro de tratar a pandemia com descaso — produzindo mais mortes e mais sofrimento.
Continuaremos lutando no ano que vem com a pandemia e com a crise econômica. É um cenário muito adverso à polarização e às opções da extrema direita.
BBC News Brasil — Eleições municipais e nacionais não são muito comparáveis, mas, em 2018, candidatos à Presidência que se apresentaram com um perfil dito unificador tiveram um percentual pífio de votação. Os resultados nesta eleição municipal de candidatos que se colocaram como moderados, de centro, mostram que este tipo de candidatura pode ter mais chances na política nacional daqui para frente?
Abranches — Sim, não tenho menor dúvida. No meu último livro, O tempo dos governantes incidentais, eu disse exatamente isso — que governantes como Trump e Bolsonaro têm fôlego curto. Se não conseguem interromper o processo democrático de tal forma que garanta sua reeleição mudando as regras no primeiro mandato, não conseguem se reeleger.
São eleitos em eleições muito atípicas, muito singulares, que não se repetem.
E conseguem, de uma forma até surpreendente, reunir em torno deles uma quantidade de demandas muito difusas — mais de aversão ao que estava, do que de fato apoio a uma proposta.
Certamente a maior parte das pessoas que votou no Bolsonaro não concorda minimamente com a agenda que ele acha importante — a agenda do “escola sem partido”, arma na mão de todo mundo…
A maioria das pessoas não concorda, nem se deu conta de que era essa a agenda dele. Ele foi revelando que a agenda é outra — demitiu o Moro, acabou com a Lava-Jato, se uniu com os caras que estão sendo processados pela Lava-Jato… Eles (esses governantes) vão dissipando um capital eleitoral muito efêmero, muito especulativo, que formaram nessa eleição atípica e singular.
Eles não conseguem reproduzir essa situação na eleição seguinte.
Agora, em 2020, o que vai ser julgado será um governo que produziu o segundo pior resultado do mundo na pandemia e uma crise econômica absurda.
O que vai estar sendo julgado não é mais o governo do PT, nem a Lava-Jato. Vai ser o governo do Bolsonaro, o fim da Lava-Jato, o aumento da inflação, a crise, a pandemia… Mudou a agenda do país.
E provavelmente 2022 ainda vai ser uma eleição atípica, porque muito marcada pela pandemia e pela crise econômica e social.
BBC News Brasil — Da mesma forma que esses políticos entraram na política de forma atípica, com métodos imprevisíveis, não é também difícil prever que o ciclo deles se encerrou, como o senhor está indicando?
Abranches — Acho que é mais previsível decretar o fim deles do que estimar a vitória deles inicialmente. A vitória deles é uma surpresa, a derrota deles não é.
E o Bolsonaro não está fazendo nada para que ganhe — ele está sem partido, não faz alianças e continua hostilizando todo mundo. E o Brasil não quer agressividade, você vê que os discursos mais agressivos foram derrotados (nas eleições municipais).
Ele ainda tem a máquina federal e pode causar muito dano à democracia, mas é uma candidatura muito vulnerável.