“Guerra territorial”: os municípios e estados brasileiros que ainda disputam fronteiras
Imagine trocar de endereço quatro vezes em dois anos. Porém, não se preocupe em desmontar os móveis – a mudança ocorre sem que sequer seja preciso sair de casa.
É o que aconteceu com os 16 mil moradores do bairro Maria Joaquina, na região dos Lagos, Rio de Janeiro. Desde 2018, quando uma lei estadual alterou a linha divisória, transferindo o bairro de Cabo Frio para Armação dos Búzios, uma série de decisões na justiça criou um verdadeiro pingue-pongue, com a região pertencendo ora a uma cidade, ora à outra.
Uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, proferida em 28 de setembro, considerou Maria Joaquina como território de Cabo Frio, porém cabe recurso.
Por trás do conflito, está o interesse na distribuição dos royalties de petróleo, importante fonte de receita para os dois municípios. Em 2019, Cabo Frio recebeu R$ 175 milhões e Búzios, R$ 77 milhões.
O caso de Maria Joaquina não é isolado.
Se as fronteiras terrestres do Brasil são relativamente estáveis há quase um século, o mesmo não se pode dizer dos limites internos do país. Disputas por territórios têm levado Estados e municípios aos tribunais.
As causas dos conflitos
Os motivos que levam um ente federativo a querer aumentar o seu território e, consequentemente, reduzir o de outro, são diversos.
Para Luigi Bonizzato, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os principais são de natureza econômica, política e estratégica.
“Dependendo do tamanho da área reivindicada, é possível alterar o número de vereadores de um município. Também pode dar ao território acesso a um recurso estratégico, como uma rodovia, ou acesso ao litoral”, explica.
Não apenas municípios discutem quais são seus limites territoriais. Piauí e Ceará, por exemplo, disputam uma área de cerca de 3 mil km² na Serra da Ibiapaba, delimitada por um acordo de 1920, cujos marcos estão imprecisos, segundo o governo do Piauí.
Em março de 2019, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, determinou que o Exército realizasse uma perícia para definir a linha divisória entre os Estados. O processo está pendente de julgamento.
A região, historicamente negligenciada pelo poder público, ganhou relevância nos últimos anos com a identificação de potenciais de mineração e energéticos, principalmente eólico e solar. Os Estados destacam-se no setor de energias renováveis, sendo o Piauí líder no país em capacidade instalada para geração solar e o Ceará o terceiro em energia eólica .
Outro fator importante é a evolução da técnica cartográfica. “Muitas dessas delimitações eram feitas com técnicas rudimentares de cartografia, frequentemente baseadas em acidentes naturais. Hoje nós temos o georreferenciamento por satélite para definição de território, que é muito mais preciso”, explica Fernando Araújo Sobrinho, professor do departamento de geografia da Universidade de Brasília (UnB).
“Quando se compara um mapa feito nos anos 40 com a imagem de satélite, você vê que a fronteira está alguns metros à frente, por exemplo. E isso afeta a arrecadação dos entes federativos”, acrescenta.
Um exemplo da importância na precisão dos marcos geográficos é a divisa entre o Pará e o Mato Grosso. Em 1900, os dois Estados assinaram um acordo para consolidar seus limites. A divisa seria uma linha reta, cujos marcos são a junção dos rios Javaés e Araguaia, de um lado, e a “Cachoeira das Sete Quedas’, no rio Teles Pires, de outro .
Por décadas, a situação parecia pacificada, até que, em 2004, o Mato Grosso alegou que um dos marcos estaria equivocado. Segundo o Estado, quando houve a realização da cartografia oficial, em 1922, foi definido como referência o “Salto” e não a “Cachoeira” das Sete Quedas, situada 140km rio acima. Isso teria suprimido 2,2 milhões de hectares de área matogrossense.
O STF julgou o caso em 2019 e manteve o território reivindicado com o Pará. A perícia concluiu que o marco definido na cartografia de 1922 é o mesmo do tratado, levando em consideração documentos da época, não alterando a linha divisória entre os Estados.
No pano de fundo da disputa estava o grande potencial hidrelétrico dos rios da região. Lá, inclusive, foi construída a usina Teles Pires, a 10ª maior do país, que passaria a se situar totalmente no Estado de Mato Grosso, caso a ação fosse procedente.
Ironicamente, a cachoeira que deu origem a toda a polêmica hoje não existe mais, engolida pelo lago da usina.
Afinal, o que define o limite territorial de uma unidade da federação? Apesar do IBGE ser o órgão responsável por criar os mapas oficiais, não é sua atribuição demarcar limites territoriais. O que consolida o território de um Estado ou município é a lei.
A criação do federalismo brasileiro, com a Constituição de 1891, foi um marco na organização político-administrativa do país. O modelo foi inspirado no dos EUA, tanto que o primeiro nome oficial da república era Estados Unidos do Brasil.
Contudo, enquanto na América do Norte vários entes, anteriormente independentes, decidiram se unir em um país único e forte, no Brasil o processo foi ao contrário, pois houve uma divisão do território.
O Brasil pré-1891 era um Estado unitário, ou seja, havia um poder central que poderia criar e extinguir qualquer unidade subnacional quando bem entendesse.
A Constituição transformou automaticamente as províncias em Estados, o que lhes garantiu uma maior autonomia em relação ao poder central.
Bonizzato explica que a alteração “atendeu a várias classes e poderes econômicos que estavam insatisfeitos com a centralização e que queriam participar da política”.
Essa situação acabou acirrando conflitos, sendo que alguns se estendem até hoje. “Muitas das disputas atuais, guardadas suas devidas proporções, nasceram em 1891. Algumas se fortificaram, outras surgiram, porém a história mostra que os problemas se prolongam no tempo”, completa Bonizzato.
Desde 1996, não é possível a criação de novos municípios no país, que somavam 5.507 à época . Apesar disso, 61 novas cidades foram criadas, a maioria sob o fundamento de que elas já existiam de fato, apenas faltava o reconhecimento legal.
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro apresentou uma proposta que extinguiria entes com menos de 5 mil habitantes, o que acabaria com 1.217 municípios. No início de setembro deste ano, o governo pediu a retirada do projeto.
Sobre um território, há um povo
Michel da Mota, 31, é comerciante e mora no bairro Maria Joaquina há 12 anos. Para ele, o principal problema que o vaivém entre municípios causa é a confusão na hora de buscar acesso a serviços públicos.
“Quem mais sofre é a classe desfavorecida, que muitas vezes tem dificuldade de acesso à saúde, educação, segurança. Nesta pandemia, não sabíamos a qual município recorrer para receber algum tipo de auxílio”, relata.
Os royalties são uma compensação pela exploração de recursos e, portanto, devem ser obrigatoriamente investidos em obras de energia, pavimentação, saneamento, saúde, educação, entre outros. Porém, apesar da riqueza que gera ao município ao qual pertence, Maria Joaquina quase não possui ruas asfaltadas, sistemas de coleta de esgoto ou de lixo adequados, sendo uma das localidades mais pobres da região.
O autor da lei que transferiu Maria Joaquina à Armação dos Búzios, Paulo Ramos, hoje deputado federal, defende que a norma atende aos anseios do bairro. “Os empregos, comércio, escolas, enfim, a vida da população de Maria Joaquina é totalmente vinculada a Búzios”. O bairro fica a cerca de 10 km do centro de Búzios e a 20km do de Cabo Frio.
Ramos argumenta que a lei corrige uma falha de definição dos limites à época da emancipação de Armação dos Búzios. “Maria Joaquina nunca poderia ter permanecido com Cabo Frio”.
Já a prefeitura de Cabo Frio argumenta que a lei de 2018 não observou requisitos formais, como a consulta à população das duas cidades, e nem realizou estudo de viabilidade antes de determinar que o bairro deixasse de pertencer a Cabo Frio.
A situação gera insegurança jurídica até mesmo para os administradores dos municípios. O pingue-pongue dificulta ações a longo prazo, pois uma prefeitura pode invadir a área de competência da outra.
Para Fernando Araújo Sobrinho, da UnB, o país deveria avançar em termos de integração entre entes federativos. “Por meio de consórcios, municípios podem comprar e dividir equipamentos, por exemplo. Mas muitas vezes caímos em questões políticas locais, como divergências partidárias. Nessas brigas políticas, o principal afetado é a população brasileira”, diz.