O que explica a ascensão do PSOL com Boulos em São Paulo
Desde que completou 18 anos, a vendedora Danielle Oliveira, agora com 37, anulou o voto ou simplesmente não compareceu às urnas, preferindo pagar uma multa pela falta. Fazia isso porque não se sentia representada por ninguém, diz.
“Não me considero de direita, nem de esquerda nem de centro. Sei que na direita nunca votaria porque sou pobre, e aprendi que a direita trabalha para os empresários e ricos.”
Na última semana, no entanto, ela decidiu finalmente escolher dois candidatos.
“Quando a gente fica mais madura, percebe que é importante votar, pois isso interfere diretamente na nossa vida”.
Para vereador, votou em um nome do Cidadania que não se elegeu; para prefeito de São Paulo, foi de Guilherme Boulos, do PSOL, que chegou ao segundo turno contra o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB).
Foi a primeira vez que a vendedora votou em um partido de esquerda .
Eleitores como Danielle deram ao PSOL seu melhor resultado em São Paulo, metrópole cuja prefeitura nas últimas duas décadas foi ocupada por tucanos ou petistas — a exceção foi Gilberto Kassab (PSD), prefeito entre 2006 e 2012.
No último domingo, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) elegeu seis vereadores na cidade, o triplo do última eleição, alcançando a terceira maior bancada da Câmara Municipal — perde apenas para PT e PSDB, ambos com oito cadeiras cada.
Já nas eleições para prefeito, Boulos teve 20% dos votos — pouco mais de um milhão de eleitores. O resultado foi comemorado diante da campanha com menos recurso financeiro e com apenas 17 segundos no horário eleitoral gratuito, enquanto concorrentes mais fortes tinham mais de dois minutos.
Para analistas políticos, o feito do PSOL não representou apenas um crescimento do partido na região, mas também a decadência do PT como a sigla hegemônica da esquerda paulistana. O candidato Jilmar Tatto recebeu apenas 8% dos votos, o pior desempenho dos petistas desde 1988.
“Esse resultado do PSOL não é algo momentâneo nem surpreendente. O partido vem em uma trajetória ascendente no campo da esquerda já há alguns anos. É um processo estratégico e consistente”, explica a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Mas como isso aconteceu? Qual foi a estratégia que alçou o PSOL, até então um partido pequeno, ao patamar de uma das principais forças políticas na maior cidade do país?
‘Decadência do PT’
A queda de votação do PT em São Paulo não é uma novidade deste ano. Em 2016, o então prefeito Fernando Haddad recebeu apenas 16% dos votos na cidade que comandava, perdendo a prefeitura para o tucano João Doria no primeiro turno, um resultado tido como decepcionante, à época.
Por outro lado, os vereadores eleitos pelo partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva são experientes e com vários anos de Casa. Eduardo Suplicy, por exemplo, o mais votado do Brasil, vai para seu terceiro mandato. Senival Moura, tradicional político da zona leste, chega à quarta legislatura.
“As pesquisas que fizemos com eleitores apontam que muita gente vê o PT como um partido que não se renovou e que apresenta os mesmos nomes de sempre, embora isso não seja totalmente verdade. Mesmo Jilmar Tatto, que se candidatou pela primeira vez a prefeito, era visto como uma pessoa que falava muito do passado”, diz Camila Rocha, do Cebrap, que estuda mudanças eleitorais na periferia de São Paulo.
Para Cláudio Couto, professor de ciência política da Fundação Getúlio Vargas, o PT não apenas não conseguiu renovar seus quadros, mas também seu discurso.
“O PT ficou muito enfraquecido depois dos escândalos de corrupção, do impeachment da Dilma e da prisão do Lula. Mas não foi só isso: o partido não reciclou suas posições, não demonstrou que corrigiu seus erros e seguiu em frente. E está pagando o preço por isso”, diz.
Para exemplificar o momento político da cidade, Couto cita a fala de Jilmar Tatto após os resultados de domingo: ao declarar apoio ao PSOL, o petista chamou Boulos de “irmão mais novo”.
“Essa frase é curiosa por dois motivos. Primeiro porque Tatto se coloca em uma posição de superioridade, mais sabido, mais maduro e mais experiente. O segundo é um reconhecimento de que está envelhecido e que o ‘irmão mais novo’ chega com mais vitalidade”, diz o cientista político.
Candidaturas
Uma das candidaturas coletivas eleitas pelo PSOL, o Quilombo Periférico, promete priorizar políticas públicas para a periferia e para população negra e de mulheres
BBC NEWS BRASIL
Já a maioria dos eleitos pelo PSOL é estreante e com perfil diferente.
Além de Toninho Vespoli e Carlos Gianazzi, mais experientes, foram eleitas uma mulher trans, Erika Hilton; uma mulher negra, Luana Alves; e duas candidaturas coletivas, a Bancada Feminista e o Quilombo Periférico, esse último formado por homens e mulheres negros de bairros dos extremos da cidade.
Um dos novos nomes do partido é Débora Alves, de 22 anos, estudante de ciências sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Moradora de Sapopemba, zona leste da capital, ela se filiou ao PSOL no início do ano e foi eleita junto aos colegas do Quilombo Periférico.
“Sempre fiz parte do movimento negro, de coletivos de cultura e educação popular na periferia. Minha filiação ao PSOL veio depois do entendimento de que o espaço político-partidário e institucional também é um espaço a ser ocupado por nós. É preciso levar a experiência desses movimentos para dentro da construção partidária”, diz.
Ela explica que a proximidade do PSOL com coletivos de jovens e com o movimento negro ajudou na escolha da sigla a se filiar.
“Como eleitora e membro de coletivo, sempre vi que o partido esteve presente em nossa luta e de outros grupos diversos da cidade. E nossa militância também esteve dentro do partido”, conta.
Para a deputada estadual Erica Malunguinho, primeira mulher transexual a ser eleita para a Assembleia Legislativa de São Paulo, o PSOL se mostrou aberto a discussões insurgentes, como raça e gênero.
“Essas discussões não são identitárias, mas temas importantes da sociedade brasileira e que precisam ser debatidos na esfera pública. Falar de questões LGBT, de racismo, de pautas indígenas, não é apenas falar sobre esses grupos, mas sobre o Brasil, sobre desigualdade, pobreza, violência”, afirma.
Para ela, esses temas não devem ser apenas do PSOL.
“É importante que essas questões sejam vistas não como pauta de um único partido, mas de toda a sociedade brasileira”, diz.
Já a deputada estadual Isa Penna, uma das dirigentes do PSOL em São Paulo, conta que aposta em candidaturas de mulheres e homens negros, LGBTs e pessoas oriundas das periferias é uma estratégia do partido, e não uma coincidência.
“A partir dos protestos de 2013, houve uma mobilização para entender o momento histórico e como ele poderia refletir em nossa agenda. Há um entendimento de que essas opressões são estruturais na sociedade. Outros partidos de esquerda também tiveram candidaturas assim, como PCdoB e o próprio PT, mas vejo que, pelo menos no caso do PT, as discussões da raça e gênero sempre foram acessórias, e não a pauta principal”, diz.
Para Camila Rocha, do Cebrap, o PSOL criou uma imagem de identificação com a juventude mais escolarizada, que participa de movimentos sociais, coletivos de cultura e feministas.
“Na verdade, essa estratégia não é muito diferente do que o PT fez no passado, embora o PT fosse mais ligado ao sindicalismo”, compara.
“Nos últimos anos, o PSOL esteve presente em movimentos de jovens, como a Marcha das Vadias, em 2011, os protestos de 2013 e ocupações das escolas”, destaca a cientista política.
Para Cláudio Couto, da FGV-SP, a aposta em pautas identitárias pode ter dois lados,.
“O PSOL conseguiu incorporar pautas do século 21, para o bem e para o mal. O discurso identitário também pode produzir isolamento, em uma lógica de gueto, de seita, de cultura do cancelamento. Uma pessoa que não tem lugar de fala dentro daquele grupo pode se sentir intrusa. Mas, se esse discurso vier com uma proposta de empatia, de agregar pessoas de diversos segmentos, pode dar certo e o PSOL tende a crescer mais”, diz.
Juventude e cursinhos populares
Em São Paulo, o PSOL tem sido descrito como um partido ligado à juventude.
Para especialistas e membros da sigla, essa proximidade se deve, também, à maneira como ela se posicionou durante momentos de efervescência política na cidade, como os protestos de 2013, as ocupações das escolas em 2015, e manifestações feministas e contra o presidente Jair Bolsonaro.
Um dos coletivos de jovens presente nesses momentos é o Juntos, que congrega milhares de pessoas em 25 Estados do país. Embora seja independente, o grupo tem muitos de seus membros filiados ao PSOL. Alguns deles se elegeram para cargos legislativos, como as deputadas federais Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim.
O coletivo surgiu em 2011, inspirado em movimentos como Occupy Wall Street e a Primavera Árabe. Mas ganhou força mesmo em 2013, com os protestos protagonizados pela juventude, participando ativamente de grandes manifestações pelo país.
“O objetivo do Juntos é organizar a juventude, unir diferentes tipos de jovens no Brasil dentro de uma causa própria”, explica Felipe Simoni, 25, da coordenação do grupo em São Paulo e também filiado ao PSOL.
“O PSOL é nosso principal aliado institucional. Muitos dos nossos membros participam da construção do partido”, explica.
Nascido na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, Simoni é estudante de geografia pela USP. Ele conta que, quando adolescente, já se sentia de esquerda, mas não via o PT como alternativa.
“Na periferia, só tinha o PT como representação da esquerda, mas eu divergia deles em muitos pontos”, diz.
Ele conheceu o PSOL em um cursinho pré-vestibular.
“Acho que ele está mais próximo dos jovens da periferia. Você vê gente do partido nas batalhas de rimas, nos slams (batalhas de poesia), nos saraus, nos cursinhos populares… É uma construção orgânica entre os coletivos e o partido”, diz.
Os cursinhos populares de preparação para o vestibular, muitos deles em bairros periféricos, também se transformaram em um espaço construído e ocupado por membros do PSOL. Normalmente, as aulas são dadas por estudantes de universidades públicas a alunos da rede pública de ensino.
Simoni, por exemplo, foi professor na Rede Emancipa, criada em 2007 e presente em sete Estados. Por ano, a rede dá aulas a 5 mil alunos, com 600 professores.
“Os cursinhos populares não são apenas pré-vestibulares, mas movimentos sociais de educação”, diz.
A cientista política Camila Rocha conta que, quando fez graduação no final dos anos 2000, já havia cursinhos ligados ao PSOL.
“Claramente houve um esforço do partido de se aproximar dessa juventude e isso tem se refletido nas urnas”, explica.
A figura de Boulos
Dados do primeiro turno e de pesquisas de intenção de voto indicam que Boulos deverá ter dificuldade em arregimentar vários setores da sociedade paulistana
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Líder sem-teto, Guilherme Boulos se filiou ao PSOL em 2018, quando se candidatou à Presidência da República. Na época, ele foi criticado internamente por ter sido alçado à condição de principal nome do partido antes de membros com mais história no grupo político. Também houve reclamações por causa de sua proximidade afetiva com Lula — o PSOL surgiu em 2004 como uma divergência do PT.
Nessas eleições, porém, críticas como essas não ganharam força. Um dos desafios do candidato para o segundo turno será vencer em bairros periféricos onde o PT sempre se saiu bem. No pleito do último domingo, Bruno Covas venceu em todas as zonas eleitorais da cidade, embora a distância para Boulos em regiões de periferia tenha sido menor, percentualmente.
Pesquisa Datafolha divulgada nesta quarta-feira, o candidato do PSOL apareceu com 42% das intenções de voto enquanto o tucano chegou a 58%, o que demonstra dificuldade do psolista em arregimentar vários setores da sociedade paulistana.
“Boulos se transformou em uma figura de visibilidade nacional por causa de sua candidatura à Presidência, sua presença constante na mídia e sua proximidade com Lula. Em grande parte, isso explica porque ele surpreendeu, chegando ao segundo turno”, diz Cláudio Couto.
“Mas ainda existe muita desconfiança sobre ele, inclusive na periferia, onde o movimento sem-teto é mais presente. Ele ainda é muito visto como uma pessoa que invade a propriedade dos outros, mesmo que sua campanha tenha investido em explicar essa questão. O tema da moradia é muito importante para a população mais pobre e de periferia”, afirma.
Para a vendedora Danielle Oliveira, que vive em Cidade Dutra, periferia da zona sul, a discussão sobre moradia foi o ponto que fez ela escolher Boulos.
“Eu não gostava de sem-teto, achava que eles invadiam a casa das pessoas. Mas um dia fui em uma invasão do Boulos aqui perto de casa, e eles me explicaram como funciona. Eu penso assim: o maior sonho do pobre é ter um carro e uma casa própria”, diz.