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Uma classificação monumental do Fluminense na Libertadores

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Uma classificação monumental do Fluminense na Libertadores


Há quem diga que na Libertadores a camisa pesa. E se Nelson Rodrigues um dia proclamou que a história do Fluminense traduz sua predestinação para a glória, o verde, o branco e o grená ajustaram-se ao corpo de jogadores que evocaram a alma guerreira de um time que não se entrega jamais. Assim, trajado com a armadura mais pesada do mundo, o Tricolor mostrou-se enorme como é para conseguir uma heroica classificação para as oitavas de final da competição continental. Uma odisseia repleta de contornos dramáticos, marcas expressivas, personagens emblemáticos, futebol bem jogado e muita luta de um grupo que insiste em calar quem dele duvidava.

A vitória sobre o River Plate em pleno Monumental de Núñez foi simultaneamente o ponto de exclamação e o ato final de uma campanha que se iniciou contra o mesmo adversário. Mas para contar essa história é preciso voltar ainda mais no tempo, quando foram sorteados os grupos da Libertadores. Coube ao Fluminense enfrentar, além do gigante argentino, os colombianos Junior Barranquilla e Independiente Santa Fe. Para muitos, começava e se encerrava ali a participação tricolor na competição.

Mas desafiar as previsões parece ter se transformado num combustível para um elenco guerreiro. “Nossa Libertadores não começa hoje, ela começou ano passado, quando muita gente não acreditava na gente. Lá fora, muitos ainda não acreditam. Mas não tem problema. Nós sabemos o que a gente pode, o que a gente está fazendo todo dia, o quanto a gente se dedica, se entrega. Vamos para dentro desses caras. Vamos botar peso”, discursou um incendiado Fred no vestiário minutos antes da estreia tricolor contra o River, no Maracanã.

Fred sabia o que estava falando. Aos 37 anos, é o líder de um grupo que mescla veteranos e garotos, muitos que jamais haviam vivenciado as sensações de uma Libertadores. O nervosismo natural ajuda a explicar o primeiro tempo tenso de um time em desenvolvimento, mas que aos poucos foi se soltando e transformando qualidade em oportunidades. A imposição tricolor dentro de casa foi coroada com um lindo gol do centroavante, após assistência de Cazares.

Aquele ponto na estreia, mais do que a liderança compartilhada do Grupo D, deu ao Tricolor a confiança necessária para seguir em frente e a certeza de que o time estava no caminho certo. No fim, Roger Machado fez uma promessa travestida de previsão aos jogadores: “Isso é briga de cachorro grande. A gente aguentou bem. O ponto que a gente ganha aqui vai fazer a diferença lá na frente. E lá na casa deles depois nós vamos dar o troco”.

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Mas até esse dia chegar havia muito a percorrer. Literalmente. Porque o que se desenhava como uma sequência de duas viagens para Bogotá e Barranquilla deu lugar a uma odisseia pela América do Sul, obrigando o time a viajar por mais de 20 mil quilômetros. A primeira mudança repentina aconteceu na véspera da partida contra o Santa Fe, pela segunda rodada. Em função do avanço da pandemia de Covid-19 na capital colombiana, o confronto foi transferido para Armenia. E nem mesmo desembarcar na cidade oito horas antes de a bola rolar atrapalhou o time, que de forma heroica conquistou sua primeira vitória na competição atuando com um jogador a menos.

Mas toda carga de dramaticidade e a epopeia tricolor ficaram em segundo plano na partida. Se de um lado o goleiro Marcos Felipe brilhou com defesas milagrosas, do outro coube a Fred, mais uma vez, roubar a cena e fazer história no Fluminense. Ao marcar os dois gols da vitória, ultrapassou Orlando Pingo de Ouro e se isolou como o segundo maior artilheiro da história do clube, atrás apenas de Waldo, com 319. “Foi uma noite perfeita. Fiz dois gols, ganhamos e consegui quebrar essa marca tão importante”, resumiu.

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Dizem que o raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. Mas aconteceu, e novamente o Fluminense se viu imerso numa teia de indefinições ao desembarcar em Barranquilla para enfrentar o Junior pela terceira rodada. Agora, foi a onda de protestos na Colômbia que inviabilizou a realização da partida no local previsto. E, mais uma vez, a delegação foi obrigada a viajar, agora para outro país. E foi em Guayaquil, no Equador, onde o Tricolor consolidou a liderança isolada do grupo, ao empatar em 1 a 1.

Se na rodada anterior havia sido Fred a estrela da companhia, dessa vez coube a Kayky, 20 anos mais novo que o ídolo tricolor, vestir o papel de protagonista. Aos 17 anos, o Moleque de Xerém tornou-se o mais jovem a marcar pelo Fluminense em um jogo de Libertadores. “Fico feliz pela marca. Estava ansioso por esse gol, já vinha buscando nos outros jogos”.

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Era hora, então, de voltar para casa, onde o Fluminense teria a chance de carimbar seu passaporte para as oitavas de final sem depender do resultado contra o River Plate na Argentina. E no primeiro dos dois capítulos no Maracanã, o final foi feliz, coroando um jogador que traduz em sua trajetória o que é ser guerreiro e jamais desistir. Foi assim que Caio Paulista, autor do gol da vitória, migrou de relegado a herói pela torcida tricolor. Nascia um xodó, que não fez a menor questão de esconder a emoção. “Essa confiança faz eu me sentir muito importante dentro do grupo. Sempre trabalhando, me dedicando e dando o meu melhor para ajudar o Fluminense”.

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Além da redenção para Caio, a vitória trouxe certo conforto ao Fluminense. Afinal, o time precisaria apenas de um empate contra o Junior na rodada seguinte para selar sua classificação. Mas o futebol encontra caminhos tortos e dramáticos para contar histórias, e o Tricolor se viu vítima dos perigos da Libertadores. A derrota no Maracanã foi um duro golpe, que poderia custar caro.

Poderia… E custaria, se não estivéssemos falando de Fluminense e sua vocação para a eternidade. A pressão pesava a bagagem do grupo que viajou para a Argentina, mas ela foi contrabalanceada pela camisa, que também ostenta seu peso, mas a favor do Fluminense. Era hora, então, de incorporar o lema do técnico Roger Machado: “Coração quente e cabeça fria”.

E foi justamente assim, numa fusão de garra e futebol, que o Tricolor fez o que pouca gente acreditava. Impôs-se sobre um também gigante River Plate, venceu, convenceu e escreveu mais um capítulo em sua já grandiosa história. Fred, numa jornada inesquecível, fez o que poucos garotos seriam capazes. Despiu-se de sua função goleadora e fez a camisa 9 que estampava suas costas virar um número 10. Com duas belíssimas assistências, presenteou Caio Paulista e Nene com gols que abriram caminho para o triunfo. E até quando o jogo parecia controlado, um gol do River devolveu carga de tensão para a partida, que só foi aliviada com o gol de Yago.

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“Foi realmente uma noite muito especial. A gente entrou muito focado, confiante, sabendo que não ia ser fácil, mas que podíamos quebrar esse paradigma de que não íamos ganhar lá, de que não iríamos classificar… esse grupo merecia essa classificação”, disse Nene, que se tornou o jogador mais velho a marcar pelo Fluminense na Libertadores aos 39 anos.

A apreensão deu lugar ao êxtase, numa espécie de catarse emocional coletiva que engrandece um time que chega às oitavas de final ainda maior do que entrou na fase de grupos. Uma equipe que agora carrega consigo o carimbo de ser apenas a segunda brasileira a vencer as potências River Plate no Monumental de Núñez e Boca Juniors na Bombonera pela Libertadores e de ser a primeira a impor aos Millionarios a primeira derrota em casa por dois ou mais gols de diferença em fase de grupos desde 1991.

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“Estamos felizes porque não é qualquer equipe que vem na Argentina e ganha do River no Monumental. Quando atleta, vivi momentos felizes aqui, venci e sei como é difícil. Era um jogo decisivo, com três dos quatro clubes do grupo vivos na competição, o que deixou o jogo tenso. Mas o time soube trabalhar bem a cabeça, o emocional, e esteve pronto para vencer sempre”, disse o técnico Roger Machado, dando o tom de uma campanha épica, que reforça que grandes são os outros. O Fluminense é enorme.

Fotos: Lucas Merçon e Mailson Santana/FFC

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