Dez anos após morte de Kadafi, Líbia é criticada por crise humanitária
Há exatos dez anos, a morte de Muammar Kadafi foi classificada pelo então secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Anders Fogh Rasmussen, como o fim do “regime do medo”. Ele governava a Líbia há cerca de quatro décadas. Justamente no mês em que se completa a primeira década sem sua liderança, o país está sendo alvo de uma série de denúncias de organizações internacionais dedicadas a causas humanitárias. Trata-se de uma reação à escalada de detenções e violência que mantém migrantes e refugiados sob a atmosfera do medo.
Situada no norte africano e separada da Itália pelo Mar Mediterrâneo, a Líbia é uma rota escolhida para muitos indivíduos que sonham em chegar à Europa. Vulneráveis, eles podem se tornar vítimas das máfias de tráfico de pessoas, que vendem uma perigosa travessia em embarcações inapropriadas e superlotadas.
Entre as organizações preocupadas com a situação estão os Médicos Sem Fronteiras (MSF), que atuam em diversos lugares do mundo combinando socorro médico e ações em favor das populações em risco. Há duas semanas, eles divulgaram nota onde afirmam que pelo menos 5 mil pessoas foram presas arbitrariamente na capital Trípoli desde o início de outubro. Dessa forma, o número de migrantes e refugiados mantidos em centros de detenção pelas forças de segurança do governo teria triplicado em apenas cinco dias. Muitas delas estariam necessitando urgentemente de cuidados médicos.
Denúncias feitas pela coordenadora operacional de MSF para a Líbia, Ellen van der Velden, são citadas na nota. “Estamos vendo as forças de segurança tomarem medidas extremas para deter arbitrariamente pessoas mais vulneráveis, que estão em condições desumanas em instalações superlotadas. Famílias inteiras de migrantes e refugiados que vivem em Trípoli foram capturadas, algemadas e transportadas para vários centros de detenção. No processo, elas foram feridas e até mortas, famílias foram divididas e suas casas foram reduzidas a pilhas de escombros”, diz Ellen.
Diante da insegurança, as equipes de MSF não estão conseguindo oferecer serviços de saúde por meio de clínicas móveis para migrantes vulneráveis e refugiados que necessitam de cuidados. As incursões também teriam afetado a capacidade das pessoas de se locomoverem livremente pela cidade e buscarem atendimento nas unidades de saúde, já que aqueles que não foram presos estariam com medo de sair de casa.
Os MSF informaram ainda ter conseguido visitar dois centros de detenção: Al-Mabani e Shara Zawiya. Em ambos, os registros são de celas insalubres e superlotadas. Apesar do tempo de visitação limitado, as equipes anunciaram que conseguiram atender 161 pacientes e viabilizaram a transferência de 21 pessoas para unidades de saúde especializadas. Em Al-Mabani, foram colhidos relatos de presos que contavam apenas com um pedaço e pão e uma fatia de queijo por dia. A organização presenciou casos de homens inconscientes e de vítimas de violência.
“No centro de detenção Shara Zawiya, que normalmente acomoda entre 200 e 250 pessoas, uma equipe de MSF testemunhou mais de 550 mulheres e crianças amontoadas nas celas, incluindo mulheres grávidas e recém-nascidos. Cerca de 120 pessoas compartilhavam apenas um banheiro, enquanto baldes cheios de urina eram alinhados perto das portas das celas. Quando a comida foi distribuída, um tumulto eclodiu enquanto as mulheres protestavam contra as condições em que estavam detidas”, diz a nota da organização, finalizada com um pedido de interrupção das prisões em massa e a libertação de pessoas detidas ilegalmente.
A situação é acompanhada de perto pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). No dia 8 de outubro, uma declaração foi divulgada por Ayman Gharaibeh, diretor do escritório regional do Acnur para o Oriente Médio e Norte da África.
“Estamos cada vez mais alarmados com a situação humanitária dos requerentes de asilo e refugiados na Líbia. Após uma operação de segurança em grande escala pelas autoridades líbias na semana passada, prisões têm ocorrido em muitas partes de Trípoli, visando áreas onde os requerentes de asilo e migrantes estão vivendo. Pelo menos uma pessoa foi morta e 15 ficaram feridas”, diz o texto.
Segundo o Acnur, mais de 5 mil refugiados já foram levados para centros de detenção em condições de superlotação e insalubridade. As denúncias também dão conta de que casas demolidas abrigavam famílias com crianças. A entidade informa ainda que tem ocorrido aumento no número de requerentes de asilo, apelando para a evacuação do país.
“A suspensão dos voos humanitários levou vários países a informarem ao Acnur que não podem mais receber pedidos de reassentamento adicionais da Líbia para 2021. No total, espera-se que quase mil vagas de reassentamento não sejam preenchidas pela Líbia ou por meio dos Mecanismos de Trânsito de Emergência (ETM) em Ruanda e Níger. O ETM permite que o Acnur retire as pessoas da Líbia e, em seguida, processe suas reivindicações por soluções de longo prazo”, acrescenta a declaração de Gharaibeh.
Pós-Kadafi
Kadafi governava o país desde 1969, tendo ocupado também funções importantes no cenário internacional como a presidência da União Africana de 2009 a 2010. Embora crítico da política dos Estados Unidos, à qual acusava de imperialismo, tinha uma relação econômica geralmente amistosa com países europeus, tendo em vista que a Líbia é importante fornecedor de petróleo para o continente. Mas após quatro décadas de sua liderança, havia forte polarização na população. Em 2011, protestos de grandes proporções começaram a eclodir em cidades importantes. Organizações internacionais alertaram para o risco de um massacre diante do iminente confronto entre tropas oficiais apoiadas por partidários do governo e opositores que acusavam Kadafi de autoritarismo, corrupção e violação de direitos humanos.
O conflito que ganhava contornos violentos era um desdobramento das manifestações populares que ocorriam na Líbia, em sintonia com o que se passava também em outros países, o que ficou conhecido mundialmente como a Primavera Árabe. Com autorização da ONU, as forças militares da Otan, sob a liderança dos Estados Unidos e com participação de ingleses e franceses, decidiram intervir militarmente em favor do Conselho Nacional de Transição (NTC), grupo de oposição que assumiu o governo e foi responsável pela captura e morte de Kadafi em 20 de outubro de 2011.
“Nos seus anos finais, Kadafi tinha feito uma série de acordos econômicos e políticos com a Europa – primeiro abrindo a Líbia para investimentos dos europeus e depois fazendo um acordo com a União Europeia para o controle das migrações. Mas havia uma dificuldade com governos europeus, principalmente pelos longos anos em que ele apoiou grupos terroristas ou armados que tentavam derrubar governos africanos. Então, quando alguns países ocidentais viram a oportunidade de intervir na Líbia, eles aproveitaram de maneira muito intensa”, afirmou o cientista político Mauricio Santoro, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Estima-se que em confrontos ocorridos entre os meses de fevereiro e agosto de 2011, pelo menos 50 mil pessoas morreram. Mas a estabilidade não veio, nem mesmo com as eleições realizadas em 2012. Uma guerra civil mobilizou diversas milícias em uma violenta disputa pelo poder, entre eles o Estado Islâmico. Responsável por autorizar a intervenção militar em 2011, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, chegou a reconhecer em 2016 que seu pior erro como governante foi não ter acompanhado de maneira efetiva o conflito após a queda de Kadafi.
“Entre 2014 e 2020, a Líbia viveu uma longa guerra civil. Foram anos de instabilidade, com muitos grupos armados tentando controlar partes do país. A derrubada do Kadafi não significou a democratização da Líbia e sim um cenário de radicalização ideológica, com consequências negativas para a população local. Só agora, no início deste ano, tivemos a posse de um governo de união nacional que está preparando o terreno para eleições nacionais, que devem ocorrer em dezembro. Mas sou cético quanto à possibilidade de uma pacificação em longo prazo, porque os problemas econômicos do país são muito graves. E o cenário global é de instabilidade”, disse Santoro.
Edição: Graça Adjuto