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A guerra não tem rosto de mulher; mas a mulher nunca é deixada em paz

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A guerra não tem rosto de mulher; mas a mulher nunca é deixada em paz


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A violência sexual em guerras tem sido amplamente documentada na história e arte ocidental, como no quadro
Reprodução/Web Gallery of Art

A violência sexual em guerras tem sido amplamente documentada na história e arte ocidental, como no quadro “O rapto das sabinas”, de Pietro da Cortona










1. Entre batons e fotos de comida no Instagram

Queria estar em paz escrevendo resenha de batom, um trabalho muito menos estressante que ser cientista política – e mais recompensador, pois me paga. Mas se o Brasil me obriga a beber, a qualidade dos comentários sobre Geopolítica na Internet brasileira me obriga a escrever. Mas escrever sobre Geopolítica não é tão fácil e recompensador quanto escrever sobre batom, embora eu saiba muito mais de política que de maquiagem. É que para falar de beleza e cosméticos faz sentido ir com a maré: usar, experimentar e falar sobre o que todo mundo tá usando. Em Política, não.

O brasileiro adora torcer para alguém, principalmente se tiver uma treta envolvida. Amamos uma rivalidade e queremos participar. Pegamos aquela rivalidade marota entre clubes de futebol, entre cidades ou entre fandom de cantora pop ou participante de reality show e levamos às últimas consequências – a ponto de tomar decisões sérias relacionadas à saúde com base no lado pro qual torcemos. Não é por acaso que no jornalismo de entretenimento inventamos o verbo “se posicionar”, que significa basicamente tomar partido ou dar explicação por algo. Geralmente uma treta. 

Agora me diz: tem treta maior do que uma guerra com potencial para destruir o mundo?


Como eu ia dizendo, eu dei aula de Geopolítica durante 5 anos. E desde que deixei as salas de aula, sempre tento me confortar, dizendo pra mim mesma que pelo menos eu não tenho que encarar uma sala de 50 jovens de 20 poucos anos esperando que eu dê conta de explicar esse rebosteio todo aí, não. 

Mas essa parte até que é fácil. A gente explica que os fenômenos políticos temos que levar em conta diversas variáveis e informações e mesmo assim a nossa conclusão não será uma totalidade, mas algo que passa por vários filtros que incluem sua socialização, sua formação acadêmica, visão política, etc, então devemos considerar qualquer análise é uma fotografia: uma imagem cristalizada no tempo, obtida a partir de um ângulo e lentes específicas. Então eu nem fico incomodada com a imensa quantidade de especialistas surgidos na semana passada. O que me incomoda é que as fotos são todas iguais. Sabe quando você entra no Instagram e só tem foto de comida ou todas as fotos com glitter possuem a legenda “minha carne é de carnaval”?

Dito isto, o que me interessa, não é o que falamos ao pensar em guerra e sim o fato de que os recortes e enquadramentos são muito parecidos entre si e há todo um universo fora do quadrinho capturado que me interessa, mas que só posso conhecer depois de delimitar as bordas do quadro. 

2. Jogos de poder

No final da década de 1990 foram produzidas múltiplas hipóteses muito parecidas entre si que se preocupavam de como seria a recomposição de forças no mundo pós Guerra Fria. Entre Fim da História (Fukuyama, 1993), Choque de Civilizações (Huntington, 1994), discussões sobre o paradoxo do poder americano (Nye, 2002) ou mesmo seu declínio (Wallerstein, 2004), uma das análises mais famosas da época era a de Brzezinski (1997), que definia a Eurásia como um “grande tabuleiro de xadrez”. No epílogo da bipolaridade, assegurar a influência/controle sobre a área seria fundamental para a redefinição do poder no mundo. 

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Neste caso, o que aparece mais é a metáfora do jogo do que o jogo em si. O xadrez é um jogo em que um peão pode derrubar o clero, o exército e as instituições de Estado, mas nos lembra que as autoridades não só possuem maiores possibilidades de movimentação, como eles são tudo o que importa no jogo. Ninguém se importa com a perda do peão; sacrificar a rainha, isso sim é digno de nota. 

Mas nós não olhamos pra política como quem olha pra um jogo de xadrez. A gente nem sabe jogar xadrez. Porém sabemos jogar War. Aquele jogo de tabuleiro em que jogamos dados e movimentamos exércitos a fim de estabelecer domínios em certas regiões para vencer, de acordo com os objetivos secretos dados a cada jogador no começo da partida. O que essas duas formas de olhar para a política, por meio de um jogo mais complexo e outro mais simples, tem algumas coisas em comum: olhamos pro mapa mundi como uma série de objetivos a serem conquistados. Na vida real, há pessoas por onde passam os exércitos em busca de assegurar controle, órbitas de influência e cumprir objetivos. 

3.  A guerra não tem rosto de mulher. E nem por isso a mulher tem paz.

Foi também no pós Guerra Fria que as questões de gênero na geopolítica começaram a tomar corpo no âmbito das organizações internacionais – a despeito da História, Arte e Mitologia das civilizações ocidentais retratarem desde os gregos a guerra como momentos em que as mulheres eram estupradas, capturadas e consideradas parte dos espólios de guerra.

Para além da visão dos conflitos bélicos como jogos de xadrez, de War ou como a Copa do Mundo – na qual geralmente escolhemos a seleção de um país que simpatizamos, mas do qual sabemos pouco ou nada, para torcer – em situações de conflitos armados as mulheres enfrentam agressões diretamente relacionadas ao gênero: estupro, escravidão e mutilações sexuais, esterilização, abortos precários, gestações e prostituição forçadas. Em contextos de guerra essas agressões podem vir dos exércitos estrangeiros, de grupos armados paramilitares, de forças de segurança internacional e de outros refugiados, do sexo masculino, por atores estatais e não-estatais. .

Estima-se que até 100 mulheres podem ter sido vítimas de violência sexual por soldados russos após a invasão de Berlim. No primeiro mês de invasão da China pelo Japão, em dezembro de 1937, 20 mil mulheres teriam sido vítimas de estupros seguidos de mutilações e assassinatos no episódio que ficou como “o estupro de Nanking”. Cerca de 200 mil mulheres foram submetidas à prostituição forçada na Coreia e em outros territórios ocupados pelo Japão. (TESCARI, 2018)

Contudo, a violência sexual contra mulher em situações de conflitos armados depois da Segunda Guerra e até a última década do século XX permaneceu tolerada, pouco discutida ou considerada parte do contexto. Foi só a partir da exposição da brutalidade contra mulheres nas guerras dos Bálcãs e de Ruanda que este quadro começou a mudar, pelo menos no âmbito das organizações internacionais.

Entre 1991 e 1993, o estupro sistemático de mulheres no território da antiga Iugoslávia era uma tática de terror para forçar os muçulmanos bósnio ao deslocamento. Nos campos de estupro, utilizados pelos dois lados do conflito, mulheres foram submetidas a estupros repetidos, gestações forçadas e detenções para impedir o aborto.

Segundo dados do Human Rights Watch, de 1996, durante a guerra de Ruanda,em 1994, a violência sexual contra mulheres foi utilizada de forma sistemática pela milícia Hutu, civis e soldados das Forças Armadas ruandesas com objetivo de destruir o grupo étnico tutsi. Mulheres hutus consideradas simpatizantes dos inimigos. Relatos de pessoas que estiveram em campos de refugiados mostram que praticamente todas as mulheres foram agredidas sexualmente

Em 1998, o Estatuto de Roma reconheceu os atos de agressão sexual e de gênero como crimes enquadrados pelo Direito Internacional e prevê a competência do Tribunal Penal Internacional para o julgamento da violência sexual como crime de guerra e crime contra a humanidade. Entretanto, isso não ocorreu sem as “controvérsias” comuns às sociedades em paz civil. Trata-se da dificuldade de discutir gênero em face às instituições religiosas e culturais. 

Conforme cita Tescari (2018), o Vaticano, apoiado pela Liga dos Estados Árabes, tentou impedir que fossem incluídos no Estatuto de Roma a perseguição baseada no gênero e a gravidez forçada. Esse último item teve também o apoio de países islâmicos e de grupos conservadores dos Estados Unidos, que tentaram retirar do texto qualquer sugestão de que obstruir o acesso à interrupção da gestação forçada seria também um crime. 

4. Mamãe, falei idiotices misóginas. De novo.

O que eu mais gosto de trabalhar com beleza e comportamento é que meu trabalho não precisa cotidianamente ser pautado por rebater cada asneira que sai pela boca de algum oportunista que entende minimamente como funciona a Internet. Se tem uma coisa que eu aprendi em todos os anos nessa indústria vital é que hate engaja e sempre que possível é melhor não bater palma pra maluco dançar. Trata-se de um princípio: prefiro destacar mulheres que rebater machistas que depois irão se regozijar com seus colegas ressentidos por ter deixado uma feminista pistola. Eu tenho muita resenha de batom pra escrever. Sem tempo, irmão.

“Elas são fáceis porque são pobres” é algo que faz parte do imaginário coletivo de todo país que possui turismo sexual. É uma frase que pode ser dita no Rio de Janeiro, nos interiores do Brasil, nas favelas, e no leste da Europa, onde o tráfico de mulheres e a prostituição forçada talvez sejam mais amplamente documentas que em outros locais. Mas antes de cair na tentação fácil de dizer que a frase provoca mais indignação porque essas mulheres são brancas, cabe lembrar que os europeus não se veem como brancos, assim como os africanos não se veem como negros e que essas definições guarda-chuva de agrupar etnias sob um guarda-chuva são úteis para entender questões de racismo estrutural, sobretudo em sociedades coloniais. Mas não servem pra absolutamente tudo e esse caso é um exemplo. 

O pior não é mulheres em zona de guerra serem consideradas fáceis por serem pobres, mas serem estupradas por serem mulheres. O pior não é um comediante sem graça com mandato parlamentar sair daqui pra Ucrânia e passar vergonha em outro continente: é que isso esteja sendo feito com dinheiro público, com o salário que eu pago. Porque amanhã a polêmica do dia será substituída por outra e por outra e por outra.

O que me incomoda é que ao fixarmos numa asneira dita por um homem, esquecemos da violência cotidianamente por eles perpetrada, com ou sem guerra. Entre elas a perpetuação da ideia de que numa situação de guerra a mulher está protegida por ser minoria na linha de fogo; que o pior que pode nos acontecer é sermos consideradas fáceis. 

Antes da guerra as mulheres russas estavam entre as que mais sofriam violência doméstica no mundo. Antes da guerra as mulheres da Ucrânia já conviviam com a possibilidade de se tornarem escravas sexuais e com o crescimento do neonazismo no país. A guerra pode não ter rosto, mas ela tem sangue de mulher e infelizmente isso não termina com as assinaturas de armistício, nem com bandeirinhas no perfil declarando torcida no Instagram.

Fonte: IG Mulher

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