“É um direito da população brasileira ter acesso a Lélia Gonzalez”, diz biógrafa
No dia 19 de outubro de 2019, a filósofa e ativista negra estadunidense Angela Davis, uma das principais pensadoras do feminismo negro e dos direitos humanos no mundo, participou do seminário “Democracia em Colapso?”, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Lá, ela questiona para um auditório lotado sobre seu papel como representante do feminismo negro. “Por que vocês aqui no Brasil precisam olhar para os Estados Unidos? Acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderão aprender comigo”, disse, despertando aplausos calorosos da plateia.
A citação de Lélia Gonzalez em um evento sobre democracia é emblemática, já que a ativista, autora e pensadora é uma das figuras históricas mais importantes do Brasil, sendo de extrema importância por sua participação em movimentos populares no período de redemocratização. Foi ainda uma das principais vozes do País a denunciar o racismo e o sexismo no Brasil.
Para se ter ideia de sua magnitude na história brasileira, ela foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, que durante o período da ditadura militar foi um dos primeiros a retomar as manifestações em vias públicas. Além disso, foi uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores (PT), um dos principais partidos de oposição ao regime militar, em 1980, e atuou no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, entre 1985 e 1989.
A ativista também fez parte da Assembleia Constituinte e teve papel fundamental ao levar as pautas da população negra e do feminismo negro para a Constituição brasileira de 1988. Dessa forma, Lélia Gonzalez se tornou uma figura civil que ajudou na criação de espaços e instituições em prol da democracia e igualdade no País.
“Lélia Gonzalez se colocou como uma das primeiras e principais pensadoras sobre temas que as pessoas consideram recentes nos dias de hoje, mas que fazem parte da construção do Brasil”, explica a pesquisadora e historiadora Jaqueline Gomes de Jesus. No entanto, mesmo que os presentes no seminário tenham ovacionado o nome de Lélia Gonzalez citado por Davis, a pensadora passou anos no esquecimento do grande público.
O Brasil de Lélia Gonzalez
Segundo a pesquisadora, socióloga e biógrafa de Lélia Gonzalez, Flávia Rios, a produção intelectual de Lélia aconteceu entre 1970 e 1990. Neste período, os estudos sobre desigualdades abordavam a população negra, mas excluíam a questão de gênero. “Já havia um desenvolvimento de estudos sobre a condição da mulher, mas as negras eram negligenciadas ou só tinham um lugar empírico, não teórico”, explica a pesquisadora.
O recorte de classe começava a ficar efervescente, principalmente as discussões relacionadas ao sistema capitalista, muito pensado por Lélia no Brasil e por outras teóricas nos Estados Unidos. Assim, Rios explica que as teorias sobre classe, gênero e raça, com as quais Gonzalez contribuiu, estavam em ascensão. “Ela fez um movimento intelectual de análise dessas realidades sociais a partir de, pelo menos, essas três dimensionalidades que envolvem a exploração e a dominação desses povos”, afirma Rios.
A pensadora também participou da chamada imprensa alternativa daquele momento, principalmente para difundir as ideias que, hoje, baseia o que se conhece como feminismo negro no País. Rios explica que, por levar em conta esses diversos pilares em seu pensamento, ela é pertencente à segunda onda feminista.
Vó Lélia
A historiadora Milena Lima não tinha a menor ideia do quão importante era sua avó quando criança. Hoje, aos 35, pensa na Lélia daquela época como uma mulher carinhosa e criativa. “Eu lembro quando a gente visitava e ficávamos sempre no escritório dela. Era um quarto, tipo uma biblioteca. Tinha uma estante enorme do chão ao teto só de livros. Ela sempre dava papel para que meu irmão e eu brincássemos de desenhar. Tinha essa visão de aflorar a criatividade na gente, de dar força pelo carinho”, conta.
Quando Lima tinha 8 anos, a avó morreu de infarto no Rio de Janeiro. Era 1994. Mas sua memória continuou viva para ela, principalmente, por meio do pai. “Ele sempre me falava que minha avó tinha sido uma grande intelectual negra, uma pioneira aqui no Brasil. Meu pai começou a ser entrevistado para umas coisas e comecei a notar que ela realmente tinha sido importante”, diz.
Mesmo diante do prestígio que o pai parecia receber, foi aos 16 anos, quando a historiadora começou a se perguntar o que estudaria na faculdade, que Lima descobriu que sua Vó Lélia, como carinhosamente a chama, era Lélia Gonzalez. “Na época, lembro que achei uma loucura o fato da minha avó ter uma página na Wikipédia. Na internet, me aprofundei sobre seu papel na luta contra o preconceito racial no Brasil”, diz.
A partir daí, ela escolhe estudar história por ser uma “ótima ferramenta para entender a questão racial do Brasil”. “‘Sua avó ia ficar muito orgulhosa’, meu pai falava. E foi quando eu realmente tive noção do quão importante ela era. Foi emocionante”, afirma.
Pioneirismo em raça, gênero e classe
Apesar de ter atuado há mais de três décadas, a contemporaneidade e o pioneirismo nas discussões raciais de Lélia Gonzalez são marcantes. De acordo com Gomes, ela foi muito privilegiada ao investigar e se aprofundar sobre a realidade do Brasil por meio das relações étnico raciais. “Lélia levava em conta a intersecção entre machismo e racismo, as questões de gênero e de classe”, explica.
Rios destaca dois eixos de sua produção e seu ativismo que, hoje, são amplamente difundidos por pensadoras e pesquisadoras no Brasil e no mundo. Trata-se dos pensamentos decoloniais e interseccionais. “Lélia já conseguia imaginar que as categorias de raça e gênero deveriam ser analisadas juntas, ou seja, de forma interseccional. Elas estão intrínsecas e não seria possível desarticulá-las porque são conceitos que se sustentam”, explica a biógrafa.
Lima ainda explica que a interseccionalidade e o decolonialismo de Lélia Gonzalez surgiram a partir de suas próprias necessidades sociais e a falta de espaço nos movimentos populares. “Ela fazia parte do movimento feminista e não se sentia representada como mulher negra, sentia que as pautas dela não eram nem citadas. No movimento negro, ela sentia que não tinha pautas das mulheres sendo tratadas corretamente”, explica.
O conceito de interseccionalidade foi criado nos anos 1980 pela escritora feminista norte-americana Kimberlé Williams Crenshaw. Mas Rios diz que as mulheres latino-americanas já raciocinavam com base nessa ideia e na decolonialidade, que visa subverter os efeitos sociais e históricos do período Colonial no presente.
“A decolonialidade é importante porque traz uma dimensão crítica ao eurocentrismo. Isso não quer dizer apagar o pensamento Ocidental, mas negar seu exclusivismo no pensamento filosófico e mostrar que é possível pensar sem se restringir a um continente ou civilização. Podemos pensar e dialogar além das fronteiras”, explica.
Em meio a interseccionalidade, Lélia ainda encontrou espaço para incluir a comunidade LGBTQIA+ em uma época sem visibilidade. Muito pelo contrário, essa população também era empurrada para as margens entre as décadas de 1970 e 1980, seja pelo regime militar, que perseguia membros da comunidade, ou devido ao boom da pandemia de HIV/Aids .
“Ela queria justiça para todas as vertentes diferentes, lutava pela igualdade total da população”, diz Lima. O engajamento da avó na pauta de orientação afetivo-sexual é muito especial para a neta, já que Lima é uma mulher lésbica. “É gratificante, me deu muito porque ela já me entendia naquela época e nem imaginava. Dá orgulho porque tive noção de que ela me aceitava. Me deu mais força para lutar pela minha verdade”.
Amefricanidade, pretuguês e resgate da ancestralidade
Lélia Gonzalez expressava preocupação em resgatar e evidenciar a ancestralidade africana presente na cultura da América Latina. “A cultura africana era uma questão importante para ela para mostrar que somos detentores da nossa história, que também fizemos histórias e temos nossos próprios heróis”, afirma Lima.
Gonzalez era uma estudiosa obstinada sobre o continente africano. Dessa maneira, conseguiu compreender tanto a história do continente em diversos períodos e as violências das pessoas que de lá vieram. Além disso, a pensadora esteve em diversos momentos no na África e se tornou uma importante porta-voz da cultura e da história africana no Brasil.
“Ela pensava a partir de intelectuais africanos e dialogava com os europeus. Ela estava muito antenada sobre a pesquisa de desigualdade de gênero na África, sobre a história pré-colonial e da colonização imposta naquele território”, diz Rios.
Esse domínio ajudou a autora a se apropriar de conhecimentos africanos para aplicá-los ao cenário brasileiro. Rios explica que foi muito relevante pensar essas realidades para reconhecer a criminalização do racismo e da violência de Estado contra pessoas negras. Além disso, também fez com que Gonzalez cunhasse novos conceitos sociais.
O principal e mais conhecido deles é a amefricanidade, um conceito para pensar as questões da América Latina como um todo, dando visibilidade às suas especificidades africanas. De acordo com Rios, trata-se de uma crítica ao eurocentrismo. “Lélia traz a ideia de que é possível falarmos da América Latina e trazer a África para o continente americano. Também evidencia a contribuição dos povos não europeus para esses países que foram invisibilizados, como as populações ameríndias e afro-americanas”, explica a biógrafa.
O conceito, Rios acrescenta, é relevante por apresentar uma ruptura da narrativa Colonial do Ocidente e do imperialismo norte-americano. Dessa forma, Gonzalez desperta um senso de solidariedade comum em todo continente. “Os processos raciais e de escravização que passamos são muito parecidos entre os países da América Latina. Então o conceito da amefricanidade nos entende como uma questão diferente, mas igual por uma questão geográfica”, completa Lima.
Além da amefricanidade, a análise da linguagem feita por Gonzalez fez com que ela cunhasse o pretuguês, termo que diz respeito às influências africanas na linguagem brasileira. “O português do Brasil é o que mais tem traços de dialetos africanos do que em qualquer outro lugar no mundo, mais até mesmo do que o português falado em Angola “, diz Lima.
Ao evocar essa ancestralidade, Gonzalez aproxima as religiões de matrizes africanas, principalmente o candomblé , de seu trabalho, misturando-as a conceitos de psicanálise, principalmente ao trabalho do psicanalista francês Jacques Lacan.
Gomes afirma que essa também foi a maneira encontrada pela pensadora para criticar o pensamento europeu. “Ela é genial ao compreender que teria muita dificuldade em reconstruir e transformar o pensamento brasileiro sem considerar as matrizes religiosas e o apagamento do pensamento africano e afrobrasileiro. Isto porque o universo conceitual que esses povos trazem são chave de uma solução daquilo que o pensamento eurocêntrico, como base judaico-cristã ainda é incapaz de compreender”, explica a pesquisadora.
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Organização de uma sociedade racista
Em maio de 2020, o termo racismo estrutural registrou picos de buscas no Google, de acordo com a plataforma Google Trends. As buscas foram motivadas depois do assassinato do norte-americano George Floyd por policiais nos Estados Unidos , que fez crescer o interesse pela compreensão do racismo.
O termo hoje é associado ao filósofo brasileiro Silvio Almeida, que lançou, em 2018, o livro ‘Racismo estrutural’. No entanto, Lélia Gonzalez já pensava em racismo estrutural antes mesmo do conceito ter nome. Para isso, Rios explica que ela recorria ao decolonialismo para entender as estruturas dele que ainda estavam presentes nas sociedades latino-americanas e, assim, compreender aspectos subjetivos da cultura, economia política e até mesmo da linguagem.
“Para provar a crueldade do racismo, ela entrou em todas as áreas possíveis, chegou a aprender psicanálise, tudo isso para provar o quão racista é a nossa estrutura”, explica Lima. Além de importar o pensamento africano, ela exportava e denunciava para o mundo o racismo no Brasil, onde o preconceito racial se disfarçava sob o chamado mito da democracia racial.
“Naquela época, o mundo não tinha essa consciência e nós exportamos essa ideia de que aqui éramos todos irmãos, todos iguais. Mas ela desmentiu e disse para o mundo que não somos tão iguais como parece”, explica Lima. Esse aspecto torna a forma do racismo no Brasil muito diferente do que nos Estados Unidos, por exemplo, já que, de acordo com Lima, o regime segregacionista tornou o movimento negro mais nítido.
“A democracia racial precisa ser criticada até hoje porque não nos contempla. Ela invisibiliza o racismo e não dá conta de explicar o porquê de tantas desigualdades devido ao discurso de homogeneidade cultural e de mestiçagem, que não existe”, continua Rios.
Mulheres negras na política
Gonzalez sempre foi uma grande apoiadora das candidaturas de pessoas negras, em especial das mulheres, na política brasileira. Com isso, sua participação deixa de se resumir ao movimento social organizado, mas passa a assumir participações em assembleias e conselhos, como dissemos antes.
Ao longo da década de 1980, após a fundação do PT, a ativista passa a construir uma figura política e lança duas candidaturas. Em 1982, ela e Benedita da Silva se candidatam a deputadas federais; não foram eleitas, mas Gonzalez entra como suplente. Em 1986, ela tenta a eleição como deputada estadual, desta vez pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), mas também não é eleita. “Ela saiu do PT porque não concordava com a maneira como enxergavam as questões raciais”, afirma Lima.
Lima explica que o principal motivo pelo qual Lélia Gonzalez não foi eleita a cargos públicos tem a ver com a maneira como suas pautas eram encaradas na época. “Devido a falsa ideia de democracia racial, ninguém conseguia enxergar a necessidade dessas questões. Era visto como algo não importante, exagerado, que não fazia sentido. Não conseguiram enxergar o quão pioneira ela era”, diz a historiadora.
No entanto, isso não impediu sua participação política. Um grande emblema disso é sua participação na constituinte, em que levou as questões das mulheres negras para que fossem incluídas na Constituição de 1988. Enquanto algumas questões defendidas por ela foram aprovadas naquele momento ou próximo dele, como a criminalização do racismo pela Lei nº7.716/1989, outras levaram mais tempo. É o caso dos direitos trabalhistas das empregadas domésticas.
“Apesar de ser uma profissão digna, era vista pelo mundo como subserviência, submissão, não se tinha respeito. Lélia sempre disse que a mulher negra precisava ser vista nessa questão também”, afirma Lima. Apesar disso, o serviço doméstico só ganhou espaço na Constituição em 2015, pela Lei Complementar nº150, e até hoje carece de fiscalização apropriada.
Presente hipotético
Ao pensar na importância dos atos e pensamentos de sua avó para o avanço dos movimentos sociais entre as décadas de 1970 e 1980, Lima lamenta o momento atual do Brasil, marcado pelo oposto disso. “Estamos em um momento de estagnação total de lutas. A gente tinha medo de perder os nossos direitos, o que não aconteceu, mas não estamos conseguindo evoluir. Com isso, a gente acaba ficando um pouquinho para trás de alguma forma”, diz.
A historiadora comenta ainda a postura do presidente da república, Jair Bolsonaro (sem partido), diante das demandas da população não branca no Brasil. “Temos um presidente que não acredita em racismo, o que é inacreditável. Temos um governo racista e homofóbico e, por isso, precisamos falgar pautas muito óbvias na humanidade”, afirma.
Perguntada sobre qual seria o sentimento de Lélia nesse momento, Lima pensa que a avó estaria chocada, mas que não se daria por vencida. “Ela ia fazer o que sempre fez: manter a luta e voltar aos movimentos de base, indo de pessoa em pessoa e mostrando que o racismo e a homofobia existem, que precisamos lutar contra essas opressões”, afirma.
Um Brasil sem Lélia Gonzalez
Três meses após a citação de Angela Davis no Sesc Pinheiros e na semana de seu 85º aniversário, o nome de Lélia Gonzalez teve um pico de buscas no Google. Mais tarde, em 8 de dezembro do mesmo ano, o rapper Emicida lançou o documentário ‘AmarElo – É Tudo Para Ontem’ , disponível na Netflix, em que cita o papel de importância da ativista na história.
.Esses dois acontecimentos recentes e de grande visibilidade cultural foram determinantes para que o brasileiro comum se questionasse: quem é Lélia Gonzalez e por que não a conheço? O motivo de sua invisibilidade para a população geral é explicado por Rios como epistemicídio. Ou seja, seus saberes e sua contribuição para a história ficaram apagados das instituições e da história. “Ela poderia ter sido lida desde os anos 1980 nas universidades. Não faz sentido que ela tenha sido aleijada por tanto tempo da produção acadêmica”, afirma Rios.
Em vida, Rios explica que praticamente nenhum de seus textos teve uma republicação no Brasil, mas seus escritos e ideias circularam nos Estados Unidos e na França, traduzidos em espanhol. Gonzalez sempre chamou atenção para a falta de visibilidade às produções de pessoas negras nos currículos escolares e acadêmicos, algo que não só não mudou até os dias de hoje, como pelo qual foi vítima.
“A gente ainda tem um currículo muito branco, masculino e europeizado. Mulheres negras não existem na universidade”, diz Lima. A historiadora afirma que aprendeu muito mais sobre os escritos e a participação em eventos históricos de sua avó pela família do que na sala de aula. “Ficava muito mais nítido para mim essa questão racial estudando história e entendendo no que minha avó participou. Por mais que ela não estivesse nos livros, eu sabia que ela fazia parte”, afirma.
Por outro lado, existe uma outra questão que impacta a invisibilização de Gonzalez: a priorização para os escritos de feministas de outros países, principalmente as norte-americanas. “A fala da Angela Davis em 2019 é muito emblemática para mim. Precisou uma feminista norte americana afrodescendente falar sobre Lélia para que ela tivesse destaque no Brasil, para a gente começar a dar a devida atenção”, pondera a neta da pensadora.
Lima não descarta a relevância e nem diminui a popularidade de feministas negras do exterior, como bell hooks ou até mesmo a própria Davis. “É óbvio que elas são importantíssimas para o movimento e ao feminismo negro, mas existem diferenças nos tipos de racismo desses lugares. A gente tem fortes influências africanas, tem a questão latinoamericana e processos raciais muito diferentes dos norte americanos”, afirma.
Gomes explica que a priorização do exterior pelos brasileiros é um costume que está no cerne da cultura do País há séculos. “Nossa economia se constituiu voltada para o capital estrangeiros. Veja, como exemplo, a constituição das capitanias hereditárias que praticaram extermínio de povos indígenas, escravizou e, mais tarde, censurou seu próprio povo em regimes políticos ditatoriais”, afirma.
Gomes continua ao explicar que ignoram-se os próprios saberes e experiências e passa-se a supervalorizar culturas de do exterior. “Não é uma xenofobia, mas uma ‘xenofilia’ doentia que fecha os olhos para a própria cultura, ainda mais aos saberes desenvolvidos por negras e negros, indígenas e por todos aqueles que fogem do ser universal, que é homem, branco, cis e heterosexual”, diz a pesquisadora.
Em seu devido lugar
Apesar da invisibilidade no País, Rios e Lima afirmam que a memória e o trabalho de Lélia Gonzalez continuam vivos nos movimentos sociais. “Ela nunca foi apagada no movimento negro. O papel dela sempre foi sabido e visto como importante, sempre foi ovacionada à altura, mas era muito mais restrita àquela bolha da luta racial”, explica a neta.
Por ter tido livros e escritos publicados pela mídia alternativa, uma das grandes vitórias para a visibilidade para o trabalho de Lélia Gonzalez daqui para frente foi a publicação do livro ‘Por um feminismo afrolatinoamericano’, em outubro de 2020, organizado por Rios e parceria com Márcia Lima, publicado pela Editora Zahar.
O título reúne grande parte do acervo escrito de Gonzalez e ainda entrevistas que ela deu ao longo da vida. Lima explica que, com ele, é a primeira vez que os escritos da avó foram publicados por uma editora de grande circulação.
Países no exterior também demonstram interesse em difundir as palavras de Lélia. Lima conta que existem conversas com editoras internacionais para que ‘Por Um Feminismo Afrolatinoamericano’ seja traduzido para o inglês e para o espanhol. “A gente está super feliz com toda essa grandiosidade que esse livro se tornou”, diz a historiadora.
Além disso, devem sair ainda em 2021 duas novas edições dos livros ‘Lugar de Negro’, escrito em parceria com Carlos Hasenbalg em 1982, e ‘Festas Populares no Brasil’, de 1987. Os dois relançamentos ainda não têm editoras definidas. Rios lembra que, com ‘Festas Populares no Brasil’, Lélia Gonzalez foi premiada na Feira de Leipzig, na Alemanha, como um dos livros mais belos do mundo. “Acho que a recepção da Lélia vai voltar a um patamar muito importante que é o lugar dela. Ela vai voltar para o lugar do qual ela nunca deveria ter saído”, diz Rios.
Lélia Gonzalez Vive
Nos últimos anos, Lima percebe que houve um aumento no interesse em relação à Lélia. Frequentemente pessoas buscam a família para saber onde podem acessar seus escritos. Isso fez com que a família, em parceria com a ONG Nossa Causa, criasse o projeto Lélia Gonzalez Vive . Na página, hospedada no site da ONG, são disponibilizados compilados que explicam os pensamentos de Lélia e sua importância como figura histórica para o Brasil. Além disso, estão disponíveis links que indicam onde comprar os livros da autora.
“O Lélia Gonzalez Vive é uma forma de publicar mais o pensamento dela e tornar mais fácil que as pessoas a encontrem na internet”, explica a historiadora. Dessa forma, ela acredita que o rastreamento do trabalho de Gonzalez será otimizado. Está nos planos futuros do projeto a digitalização de seu acervo. Além disso, esse rastreamento pode ser feito também pelo Instagram, pelos perfis @leliagonzalezoficial e @nossacausa .
Rios complementa que qualquer tipo de iniciativa de difusão do pensamento de Lélia, seja em coletâneas, relançamentos ou na internet, são da maior importância para a memória do Brasil. “Lélia Gonzalez é uma intelectual vigorosa, clássica. É um direito da população brasileira ter acesso a ela”, afirma.
“Ela precisa ser lida, estudada e circular nas bibliotecas públicas brasileiras. Nós temos que conhecer nossos intelectuais, críticos e intérpretes e refletir sobre suas contribuições para o país, para a América Latina e para além. Porque Lélia Gonzalez é uma intelectual do mundo”, continua Rios.