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Entrevista: prestígio social e trabalho feminino entre indígenas Huni Kuin

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Entrevista: prestígio social e trabalho feminino entre indígenas Huni Kuin


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A antropóloga Ana Yano teve seu primeiro contato com o povo caxinauá em 2007, na condição de assistente de um projeto de pesquisa internacional. Os caxinauá (huni kuin) constituem a população indígena mais numerosa da  região localizada na fronteira entre o Acre e o Peru. Yano hoje é pesquisadora colaboradora do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA/USP). Em sua tese de doutorado, “Carne e tristeza – sobre a culinária caxinauá e seus modos de conhecer” (2015), examina alguns aspectos das relações articuladas em torno do ato de preparar a comida e ofertá-la a alguém.

Na entrevista a seguir, a antropóloga fala sobre essas experiências de convívio com o povo caxinauá, em especial com as mulheres dos locais onde realizou seu trabalho de campo. Na entrevista a seguir, a pesquisadora comenta ainda sobre ritos de passagem das mulheres desta etnia e sobre como a visão deles sobre os papeis sociais atribuídos às mulheres, maternidade e outros assuntos que nos mostram que neste dia nacional dos povos indígenas, talvez não seja importante apenas aprender sobre eles, mas aprender com eles. Com elas. 



Fhoutine MarieEm primeiro lugar, eu gostaria de pedir que você explicasse quem é o povo caxinauá/huni kuin, onde eles vivem e como foi seu primeiro contato com eles.

Ana Yano:  “É importante esclarecer, de partida, que o termo caxinauá, “gente morcego” ou “homens vampiros”, não corresponde ao modo como eles designam a si mesmos. Nos dias de hoje, sobretudo no Brasil, devem ser chamados de huni kuin, “nossa gente”, nome que designa uma parcela restrita da humanidade (huni) que compartilha, de seu ponto de vista, um modo próprio, exemplar (kuin) de existir. Tal designação, no entanto, não é exclusiva deles: sem entrar em detalhes, ressalto apenas que dentro da família linguística pano, da qual os huni kuin fazem parte, outros grupos indígenas também se autodenominam assim.

Minha primeira visita a uma aldeia huni kuin aconteceu entre os meses de julho e agosto de 2007. Na condição de estudante assistente de um projeto de pesquisa internacional, tive a oportunidade de viajar de Rio Branco ao município de Santa Rosa, no Acre, subindo o rio Purus até seu afluente Curanja, no Peru. É na fronteira entre os dois países que os huni kuin vivem, distribuídos em doze Terras Indígenas no lado brasileiro – é a população indígena mais numerosa do Acre – e em cerca de vinte Comunidades Nativas no lado peruano, no curso dos rios Envira, Purus, Tarauacá, Jordão, Muru, Humaitá, Breu, Curanja e Alto Purus. Na companhia de dois pesquisadores bastante experientes, um antropólogo e uma linguista, visitei as comunidades de San Martín, Miguel Grau, Nueva Esperanza, Colombiana e Balta. Foi uma viagem curta considerando a distância percorrida no espaço de um mês, mas muito estimulante e enriquecedora”. 

F.M.: Como foi esse primeiro contato com os huni kuin? 

A.Y:  “Os huni kuin nos recepcionaram com muita generosidade, muito cuidado, muito carinho e, sobretudo, muita paciência, considerando que eram três pessoas estrangeiras a receber em suas casas. Para eles, a gentileza se manifesta de forma muito sutil: cedem o lugar na rede para a pessoa se sentar, oferecem a ela a parte mais gordurosa da carne, assopram a macaxeira ou esfregam a banana, ainda quentes, para aliviar o calor. Em contrapartida, interromper bruscamente a fala de alguém, impor, pelo volume de voz, sua palavra sobre a do outro, apontar pessoas e objetos com o olhar e o dedo em riste são atitudes consideradas agressivas e raivosas, desaprovadas socialmente. Tudo isso se aprende no dia a dia, por meio da convivência, “ficando junto”, conforme ouvi muitas vezes nessa e nas viagens subsequentes, em 2008, 2013 e 2014, todas elas ao longo do rio Purus”. 

F.M: Você mencionou alguns aprendizados neste primeiro contato, em 2007, e outras viagens realizadas em anos posteriores. Você poderia comentar um pouco mais sobre esses aprendizados, na condição de pesquisadora e mulher “estrangeira” (não indígena)?

A.Y.: “Aprendi com os huni kuin que é preciso “se acostumar” (yuda wa, em tradução literal, “fazer corpo”): acostumar-se com a comida, com o jeito certo de comer, beber e se sentar, com a língua, com o barulho e o cheiro das coisas, com o gosto amargo da ayahuasca, da pimenta e do tabaco. Para eles, conhecer algo ou alguém passa pelo toque, pela textura da pele; de início, não era raro as mulheres mais velhas me puxarem pelo braço e alisarem as minhas mãos, dizendo que minha pele era muito fina, que era preciso engrossá-la.

Costumavam também mexer em meus cabelos passando os dedos entre os fios. Encostar-se em alguém, espremer picadas inflamadas, cutucar feridas, afagar os cabelos à procura de piolhos – tudo isso envolve o toque e carrega, para os huni kuin, forte conotação afetiva.

No longo processo de se acostumar com o que comem os mais velhos, com a moderação que rege o tom de voz, os gestos e a conduta no dia a dia, as crianças vão se fazendo huni e ainbu kuin, a saber, respectivamente homem e mulher kuin, que vivem de acordo com aquilo que os antigos huni kuin julgam ser bom, belo e correto. Na condição de jovem e estrangeira, foi igualmente necessário que eu me acostumasse a eles e eles, a mim, compartilhando refeições, ouvindo um ao outro, aprendendo a língua, em suma, vivendo junto.

Tal processo, no entanto, não se dá por encerrado, ao contrário: deve ser continuamente cuidado e atualizado, razão pela qual muitos huni kuin lamentam a partida de seus parentes e pessoas queridas para longe, sob o risco de não se reconhecerem mais como pessoas que partilham de uma mesma humanidade”.

F.M.: Na conversa prévia que tivemos você mencionou que as mulheres caxinauá vão para uma casa na adolescência. Queria saber um pouco mais sobre esses ritos de passagem e preparação para a vida adulta.

Você viu?

A. Y.:  “Em outros tempos, quando a plantação de milho prosperava, os huni kuin formalizavam o término da infância e a posterior passagem à juventude com uma grande festa, conhecida como nixpu pima, na qual os adultos davam às crianças que trocaram de dentição o cipó nixpu para mascar. Com os dentes enegrecidos, meninos e meninas passavam dias e noites reclusos em uma casa, deitados na rede de olhos fechados, alimentando-se basicamente de caiçuma de milho. Tal alimento, segundo os huni kuin, não apenas engorda a carne e endurece os ossos dos jovens, como encorpa o sêmen dos rapazes e lhe confere vitalidade.

No caso das meninas que menstruavam pela primeira vez, a ingestão abundante de caiçuma de milho igualmente se encarregava de engordá-las, sinônimo, para eles, de um corpo belo, sábio e saudável. Finda a negritude dos dentes e a reclusão, afirmam os huni kuin que os ossos dos meninos e das meninas estão mais rijos; seu pensamento, mais forte. Dotados de uma capacidade mais aprimorada para ouvir e, portanto, entender, os rapazes arriscam-se a caçar sozinhos animais de porte maior, enquanto as garotas se ocupam mais com a cozinha e a tecelagem de algodão. A maturidade, contudo, não é plena, pois ainda não têm muita experiência”.

F.M.: Entre os não-indígenas, o trabalho doméstico e de cuidado com crianças, idosos e doentes em geral é atribuído às mulheres, mas é um “trabalho invisível”, já que muitas vezes é desprovido de remuneração (ou mal remunerado) e/ou de prestígio. Como é isso nas sociedades ameríndias em geral e entre os huni kuin, em particular?

A. Y.: “Há uma divisão clara, no dia a dia da aldeia, entre o que está a cargo das mulheres e dos homens huni kuin: em linhas gerais, cabe a elas cozinhar, tecer algodão, buscar os vegetais no roçado e enfeitar os corpos das crianças e dos adultos com pinturas à base de jenipapo, ao passo que os homens se encarregam de abrir roçados, partir em expedições de caça e pesca, construir casas e canoas. Em razão dessa divisão, não é incomum a associação das mulheres huni kuin à chamada “esfera doméstica”.

A questão, no entanto, está menos na referida associação que em nossa insistência – e aqui eu me refiro aos homens e às mulheres não indígenas – em prestigiar somente aquilo que reconhecemos como trabalho remunerado. Entre os huni kuin, isto não procede. Para eles, um dos principais atributos das pessoas reputadas conhecedoras, xinanya, está na capacidade de colocar em prática aquilo que sabem com alegria. Assim fazem as mulheres reconhecidas pela comunidade como exímias cozinheiras: prestigiadas por todos, sua mesa farta anuncia sua dedicação ao trabalho, a prosperidade do roçado e o êxito de seu marido como caçador.

Tal habilidade, contudo, não se limita à destreza com a qual manuseiam os alimentos e lhes conferem textura e sabor: ela se expressa, fundamentalmente, na generosidade com a qual acolhem as pessoas que batem à sua porta, convidando-as a comer junto. Para os huni kuin, como para os povos ameríndios em geral, é por meio da comida que compartilham um jeito particular de ser e de viver, fortalecem relações de parentesco, expandem, para além da aldeia, sua socialidade.

Uma boa refeição não se faz apenas da carne de caça vir acompanhada de macaxeira ou banana cozida, mas do cumprimento de uma etiqueta muito específica na hora de se servir: não se come jamais sozinho ou mal asseado, do mesmo modo que não se abocanha a carne sem mordiscar, logo em seguida, um naco de vegetal, mastigando-os juntos. A despeito, portanto, do forte apreço que têm pela carne de certos animais, os huni kuin não só prezam pela mistura e pela moderação, como afirmam a importância de se acostumar, no curso da vida, aos alimentos que tanto apreciam, privando-se deles em momentos considerados críticos, a saber, quando se encontram mais vulneráveis a agressões.

Nesse tocante, quando as mulheres mais velhas reconhecem as habilidades culinárias de uma jovem huni kuin – o que acontece, em geral, após o casamento e o nascimento do primeiro filho –, esta última não apenas passa a exercer autoridade plena sobre a cozinha, como assume, aos olhos da comunidade, sua condição de mulher adulta, plenamente capaz de zelar pelo corpo dos outros.

É por meio de seus cuidados, por exemplo, que seus filhos, ainda bebês, passarão a se acostumar com outros alimentos que não o leite materno, aprimorando o paladar conforme seus ossos endureçam e eles comecem a andar. Na mesma chave, em situações de vulnerabilidade, cabe a ela e ao pai da criança privarem-se da carne de caça e de outros alimentos gordurosos e temperados, alimentando-se, em contrapartida, de comida insossa até que seus corpos se recomponham”.

F.M: Outro trabalho invisível no nosso modo de vida é a maternidade. Você mencionou em nossa conversa antes desta entrevista a importância dada pelos indígenas para o “fazer pessoas”. Gostaria que você comentasse um pouco mais sobre esse tema e pontuasse algumas diferenças em relação ao modo de vida não-indígena. 

A. Y.:  “Sem entrar a fundo na temática da concepção de pessoa e corpo para os ameríndios, observo com interesse a seriedade e o compromisso com os quais os povos indígenas, cada qual à sua maneira, concebem e vivenciam o resguardo durante a gravidez e o pós-parto. Para além dos cuidados, que não se restringem ao círculo dos genitores – evidenciando, assim, a contribuição de diferentes gentes na feitura de criança –, há uma noção muito particular de tempo que merece atenção.

Entre as mulheres huni kuin, por exemplo, o rigor da reclusão pós-natal atenua-se conforme a tinta do jenipapo que enegrece e protege a pele do bebê desbota, sinônimo de que seus ossos estão um pouco mais firmes e seu sangue, mais grosso. Ainda hoje, me parece, é nesses termos que algumas pessoas huni kuin concebem a passagem do tempo, a despeito de vez ou outra recorrerem à contagem em anos (badi, “sol”) ou meses (uxe, “lua”) a fim de situar o locutor estrangeiro na temporalidade em questão.

Em nossas conversas, não era raro se reportarem a determinados fatos tomando como referência temporal o nascimento ou a morte de alguém, a prosperidade do roçado, a aquisição da fala por alguma criança, a chegada de uma nova família à comunidade.

Diferentemente do que institui, quase como consenso, a medicina brasileira – a saber, de que o puerpério duraria entre quarenta e sessenta dias a contar da data do parto –, é no corpo, e por meio dele, que os huni kuin definem o início e o fim do resguardo: do momento em que a criança aprende a engatinhar, a expressa proibição dos pais de comer carne começa a ser relaxada e alimentos mais sólidos, como pequenas porções de vegetais cozidos, são introduzidos em seu cardápio, retomando, assim, a vida social”.

Fonte: IG Mulher

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