É fim de tarde no bairro portenho de Almagro, onde fica o gigantesco Hospital Italiano, um dos mais importantes da rede privada do país. Ao ouvir o nome do ginecologista e obstetra Mario Sebastiani, eminência nacional e um dos primeiros a defender publicamente, há mais de 30 anos, a legalização do aborto, a recepcionista não muda de expressão e indica o número de seu consultório, com naturalidade. Até janeiro de 2021, quando entrou em vigência a Lei 27.610, que tornou o aborto uma prática legal e gratuita na Argentina até a 14ª semana de gravidez, mulheres que chegavam perguntando por Sebastiani estavam, em muitos casos, em busca de um atendimento clandestino para interromper uma gestação. E todos sabiam.
Hoje, a realidade neste hospital e em muitos outros da Argentina é diferente. Existem médicos e equipes prontos para atender quem decide abortar. Em palavras de Sebastiani, respira-se alívio entre as mulheres que, com a tranquilidade de saber que, evitando algumas instituições onde sabe-se que ainda existe preconceito, estigma e predomina a chamada objeção de consciência dos profissionais da saúde (usada para negar-se a realizar abortos), na maioria dos casos as situações se resolvem bem.
Não existem estatísticas oficiais prévias a 2021. Dados do Ministério da Saúde do ano passado indicam que foram realizados 64.164 abortos em todo o país. A província de Buenos Aires, onde vive cerca de um terço da população, concentrou a maior quantidade de procedimentos: 26.500. Em todo o ano de 2021, foram distribuídos na Argentina 100 mil tratamentos de misoprostol, indicado e fornecido gratuitamente a mulheres que querem abortar. O volume equivale ao primeiro semestre de 2020, sinal de que o Estado argentino está empenhado em garantir que a lei seja cumprida e que os hospitais do país tenham os recursos para isso.
As boas notícias convivem com temores de retrocesso — acentuados desde que a Corte Suprema dos Estados Unidos derrubou o direito constitucional ao ao aborto no país. Há tentativas de boicote por grupos conservadores que recorrem à Justiça, e o preconceito e o estigma ainda fortes entre profissionais da saúde.
Na semana passada, grupos feministas organizaram uma marcha até a Embaixada dos EUA em Buenos Aires, em apoio a movimentos que vem protestando contra a decisão do tribunal americano. Os comentários refletiam medo, pelo que aconteceu em outro país, mas também pelo que se teme que, algum dia, poderia acontecer aqui.
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“O aborto legal foi conseguido depois de mais de 30 anos de luta, período no qual calculamos que entre quatro e cinco mil mulheres morreram em abortos clandestinos. Temos de estar em permanente estado de alerta, porque de uma canetada pode tentar anular essa conquista”, afirma Sebastiani, autor do livro “Aborto legal e seguro”.
De fato, desde o veredicto americano dirigentes conservadores, como o deputado Javier Milei, que lidera algumas pesquisas para as eleições presidenciais de 2023, defendem a revisão da lei.
“Nunca estivemos eufóricos porque sabemos que é preciso ter cuidado. Em alguns hospitais, a maioria dos médicos apela para a objeção de consciência, o que acontece na rede pública e privada. A objeção é um direito, mas existe um abuso”, aponta Sebastiani, que afirma ter hoje em seu consultório menos consultas hoje sobre aborto do que tinha há cinco anos.
Segundo o médico argentino, os investimentos estatais em programas de distribuição de métodos anticoncepcionais funcionaram. Nos casos em que as mulheres chegam decididas a abortar, na grande maioria das vezes, diz, porque são gestações não planejadas, tudo flui sem sobressaltos.
“Damos os remédios, se surge a necessidade se faz uma raspagem, mas em geral não é necessário. Se alguém não quer usar os remédios, fazemos a raspagem diretamente, mas isso é muito pouco frequente. As mulheres chegam tranquilas. Temos equipes e as pessoas são muito bem tratadas”, comenta Sebastiani.
O diagnóstico, em todos os casos, é o mesmo: interrupção voluntária da gravidez. As diferenças surgem pela atitude dos médicos, das instituições e dos governos locais. Em algumas províncias, como Salta e Corrientes, as resistências são maiores, afirma Ana Correa, do movimento Nem Uma a Menos e autora do livro “Somos Belen”, que narra a história de uma jovem da província de Tucumán que sofreu um aborto espontâneo e foi presa, acusada de tê-lo provocado — antes da aprovação da lei.
“O acesso das mulheres ao aborto legal depende muito de onde moram. Para algumas ainda é complicado”, frisa Correa, que estava na marcha na semana passada em Buenos Aires e define o atual momento como de “alerta”.
Acesso desigual
Na opinião de Mariana Romero, médica, pesquisadora do Centro de Estudos de Estado e Sociedade (Cedes) e integrante do projeto Mirar, que monitora a implementação da lei, “sem dúvida o ponto de partida é promissor, mas persistem situações de maus tratos e estigmatização. Os dois cenários coexistem”.
“Quando começamos, tínhamos 900 instituições públicas e privadas que davam acesso ao aborto legal e hoje temos 1.400. A questão é que esse acesso é desigual e está muito concentrado em áreas urbanas”, explica Mariana.
A estigmatização da mulher que decide abortar aparece em vendedores de farmácias, enfermeiras e médicos. Em muitos casos, elas acabam, por esse motivo, não contando com as informações necessárias para um aborto seguro. Então recorrem a ONGs que acompanham e suprem lacunas dos sistemas público e privado.
Na província de Tucumán, a Fundação MxM, criada para lutar pelos direitos das mulheres do Norte argentino, é uma das mais procuradas. Recentemente, uma jovem de 23 anos se comunicou com a fundação porque, ao chegar a um hospital para fazer um aborto, recebeu apenas uma caixa de misoprostol, sem qualquer tipo de indicação sobre como realizar o procedimento.
Meninas e não mães
Apesar dessa resistência, reconhece a advogada Soledad Deza, uma das sócias fundadoras da ONG, no ano passado foram realizados 4.021 abortos legais em Tucumán.
“A interrupção voluntária da gravidez até as 14 semanas está funcionando relativamente bem. Hoje, notamos que as dificuldades são maiores nos casos de mulheres, em muitos casos meninas, vítimas de estupro e cujas vidas correm perigo. Nesses casos, o aborto é permitido desde 1921 e este ano tivemos duas meninas, de 10 e 11 anos, que foram mães porque não se conseguiu realizar o aborto”, conta.
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A lei foi uma grande vitória, mas em províncias como Tucumán a gravidez de meninas continua sendo algo naturalizado. Em outras, como Salta, médicos foram processados por realizar abortos. São reações conservadoras, afirma Deza, que buscam intimidar profissionais da saúde. De acordo com o Ministério da Saúde, no ano passado grupos conservadores moveram 36 ações em todo o país para tentar impedir a realização de abortos garantidos por lei. Todas foram derrotadas.
“Nossa missão é ajudar as mulheres a superar as barreiras que persistem”, diz.
Outra ONG, em campo desde 2014, é a Socorristas em Rede, que em 2020 ajudou 17.534 mulheres a realizarem abortos. Após a aprovação da lei, o grupo intensificou seu trabalho e, em fevereiro deste ao, 240 integrantes se reuniram para fazer um balanço e um plano de voo para o futuro. Um de seus lemas é “ter um mundo mais justo, no qual meninas não sejam mães”.
Fonte: IG Mulher