Trabalho reprodutivo: o trabalho que torna todos os outros possíveis
Letícia Matiazzo, 24, é mãe solo e sofre julgamentos por não trabalhar fora. Quando precisa de ajuda, se sente mal de pedir favores que envolvem a casa ou a filha. “Quando você não tem o pai no seu dia a dia, não tem como cobrar essa obrigação de ficar com o filho para você fazer algo. A gente depende de favor, e me sinto mal de pedir porque é cansativo e é chato”, diz.
A estudante de Letras afirma que ser mãe desempregada, cuidar da criança e da casa é mais desgastante que um trabalho fora de casa. “É fato que trabalhos domésticos não são valorizados, e cuidar do bebê não é a parte difícil, a parte difícil é cuidar do bebê e dar conta de todo o resto, ao mesmo tempo”. Mesmo assim, ela se cobra: “A gente começa a se sentir insuficiente”.
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Trabalho reprodutivo é o termo usado para se referir às tarefas fundamentais à manutenção da vida: preparação de alimentos, cuidados com crianças, idosos e doentes, e demais atividades ligadas a gestão do espaço doméstico. Geralmente o trabalho reprodutivo é o primeiro a ser exercido por mulheres. Muitas vezes ainda na infância, meninas são incumbidas de cuidar dos irmãos menores e auxiliar nas tarefas domésticas.
Tratam-se de trabalhos não remunerados em muitos casos. Em outros, ele assume a forma de profissões precarizadas, como as trabalhadoras domésticas, babás, cozinheiras, serventes, cuidadoras de idosos. Segundo a filósofa italiana Silvia Federicci, o sistema capitalista depende do trabalho não remunerado das mulheres para acumular valor, e que esta exploração está ainda mais evidente agora no contexto da pandemia.
Segundo dados de 2020 do IBGE, por semana, as mulheres dedicam, semanalmente 10,4 horas a mais que os homens aos afazeres domésticos ou cuidado de pessoas. Além disso, mais de 11 milhões de brasileiras não têm a ajuda paterna na criação dos seus filhos. Elas também chefiam 28,9 milhões de famílias brasileiras. O acúmulo de responsabilidades sobrecarga física e mental para as mulheres. Um das razões é que, por não ser remunerado, o trabalho reprodutivo não é reconhecido como trabalho.
Larissa Cabral, de 23 anos, conta que sempre foi acostumada a trabalhar, mas com as mudanças da maternidade, foi afetada em algumas questões psicológicas. Uma das coisas que mais a abalou foi ouvir de parentes que não entendiam porque as mães reclamam tanto e dizem sempre estar cansadas.
“Sempre fui muito independente e agora, me vendo nessa situação de dependência, isso acaba mexendo um pouco com a questão mental, sim. A gente fica muito em casa, não distrai a cabeça, não conversa com ninguém, e ao contrário do que dizem, também é um trabalho estressante. Mesmo fazendo as tarefas, o dia vai passando e nos sentimos inúteis, independente do dia ter sido produtivo”, diz.
Para a antropóloga Valquíria Renk, a desvalorização acontece por ser uma construção sócio-histórica. Renk explica que essa desvalorização ocorre porque o trabalho e cuidado do espaço doméstico é visto como algo familiar que sempre foi atribuído às mulheres.
“O trabalho doméstico, quando realizado por um familiar, não é pago, então gera uma economia para a família. É uma situação persistente. A pandemia mostrou que, com o home office e aulas on-line, as mulheres têm tripla jornada de trabalho, cansaço físico e mental”.
Heloísa Capelas, especialista em autoconhecimento, inteligência emocional e inovação pessoal diz que a desvalorização também se dá pela mulher ainda ser considerada um subproduto. “Durante a Idade Média a mulher foi fortemente desclassificada, por exemplo, e até hoje não houve tempo de se mudar essa crença social. Hoje, mesmo a mulher exercendo funções profissionais, essa crença permanece forte e a mulher segue acumulando funções e se cobrando a todo momento por tudo que venha a executar.”
Quando a desvalorização vem por parte do parceiro(a), a situação fica ainda complicada. Nicole Barbosa*, de 22 anos, conta que parou suas antigas funções para se dedicar ao cuidado da filha. Por não exercer uma atividade remunerada, o marido e a família não consideram que ela tenha um trabalho. “Ele considera que ele trabalha e eu não… Enquanto o pai está seguindo a vida normalmente, eu estacionei aos 22 anos e me desdobro muito para conseguir fazer a faculdade enquanto cuido da casa e de uma bebê de 7 meses”.
Ela continua: “Meu trabalho nunca acaba, não tem férias, não é remunerado, não tem décimo terceiro. Ontem mesmo eu tive uma crise de ansiedade, não consigo dormir nem quando estou cansada, nem pra levantar para ir ao banheiro, porque a minha mente só pensa em tudo que eu preciso fazer e não acaba.”
Quem cuida de quem cuida?
A rotina exaustiva muitas vezes afeta a saúde mental das mães de uma forma perigosa, causando ansiedade, depressão e outros distúrbios psicológicos. A psicóloga Natália Silva explica que essa demanda impacta diretamente na autoestima e confiança.
“Em meio a tantos papéis sociais que ela tem que cumprir, ela não tem tempo de se olhar, para se cuidar, para tentar entender o que ela quer ou não quer, gosta ou não gosta. Ela se camufla entre tantos outros papéis que ela precisa desempenhar”, diz.
Ficar em casa, ainda mais em tempos de pandemia, pode ser muito angustiante. A socialização da mãe, mesmo que por redes sociais, vídeo-chamadas e ligações é muito importante para a questão social e mental. Se colocar em primeiro lugar é uma tarefa difícil para as mães que se sentem culpadas. A psicóloga Patrícia Guillon explica que conversar com os amigos e se distrair é extremamente importante.
“A primeira grande tarefa da mulher é lidar com essa culpa até entender que ela existe e vai fazer parte dessa condição materna, mas que ela vai ter que enfrentar isso e cuidar dela mesma. É importante que você socialize, busque o que vai te fazer bem mesmo que isso demande tirar um pouco de tempo das outras áreas.”, diz Guillon.
Telma Abrahão, educadora parental e especialista em educação emocional, conta que o distanciamento da vida social causa o isolamento e sensação de solidão, gerando uma sobrecarga emocional muito grande. “Cuidar de uma criança e da casa exige uma grande dedicação, e isso somado a tantas outras responsabilidades se torna uma tarefa muito pesada para exercer… É fundamental construir uma rede de apoio e buscar suporte psicológico sempre que necessário”.
Questões coletivas requerem soluções coletivas
A autora de “O ponto zero da revolução – trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” (Editora Boitempo), Silvia Federicci (citada no começo desta reportagem), diz que hoje, há mais mulheres privilegiadas que têm condições de contratar trabalhadoras domésticas.
“É uma categoria particular de mulheres, que têm dinheiro para empregar outras mulheres, o que cria uma situação cheia de contradições. Muitas mulheres estão vivendo uma vida que é só trabalho, sem seguridade, dinheiro ou tempo. E tempo é muito importante: para fazer algo diferente, se afastar dos filhos ou do trabalho. Nós temos que reabrir a luta sobre o trabalho reprodutivo”, disse a autora em entrevista concedida ao jornal O Globo, em agosto do ano passado.
Para a filósofa, trata-se de uma questão que afeta a todas as mulheres, já que sem o trabalho doméstico, o mundo não se move. “Acho que o movimento feminista, em geral, não deveria apenas dar apoio a essa luta, mas vê-la como o começo de nova negociação em torno da questão da reprodução”.
Trata-se, portanto, de um problema coletivo e como tal, precisa de soluções coletivas. “Temos que forçar governos e corporações a mudar o uso da riqueza social. Precisamos tirar o dinheiro das forças militares, das prisões, dos sistemas de vigilância e colocar nas comunidades, nos serviços de reprodução. Precisamos criar estruturas mais coletivas e cooperativas”, afirmou.